Violência Institucional até quando?
ONDJANGO FEMINISTA
Frequentemente chegam-nos relatos e denúncias de actos de violência perpetrados contra mulheres trabalhadoras no mercado informal, sobretudo, aquelas que todos nós conhecemos como zungueiras. De acordo com a ASSOGE (Observatório de Género), no seu Estudo Sobre a Mulher Zungueira, dados dão conta de que: 70% das pessoas inseridas no mercado informal são mulheres; 80% estão entre os 15 e 39 anos; 54% não tem bilhete de identidade; 78% tem menos do que a 7.ª classe e estima-se que menos de 5% exerce actividade na sua província de origem.
A maior parte dessas pessoas, com realce para as mulheres, se encontra em situação de extrema vulnerabilidade socioeconómica. Diariamente procuram sobreviver a inúmeras dificuldades, e dos pequenos negócios que fazem retiram o que conseguem para sustentar as suas famílias.
Nestes últimos dias, a vítima de actos de violência institucional foi Joana Luzia, uma jovem de 26 anos, residente na província da Huíla, no município do Lubango, que é vendedora ambulante. A partir do negócio da zunga ela procurava sustentar a sua família – os filhos e os irmãos. Enquanto exercia a sua actividade económica, Joana foi brutalmente agredida por fiscais ao serviço da Administração Municipal do Lubango, tendo havido necessidade de intervenção cirúrgica, considerando o estado grave em que chegou ao Hospital Central do Lubango. As frutas que vendia foram destruídas e o dinheiro que detinha na altura foi levado.
Após a operação e a permanência no hospital por alguns dias, teve alta, encontrando-se, neste momento, em casa. Ficaram no corpo de Joana marcas de ferimentos, sendo uma das mais visíveis os 17 pontos na região do abdómem onde sofreu a intervenção cirúrgica. Ficaram também mais dificuldades para se sustentar e sérias dificuldades em obter tratamento médico adequado. Ela conta que nos dois Postos Médicos mais próximos da sua casa não há material médico e, às vezes, nem sequer há enfermeiros disponíveis. Para fazer os devidos e necessários curativos às feridas dizem-lhe que tem de comprar e levar o próprio material aos Postos.
De acordo com o Código Penal Angolano, no seu Artigo 360.º, os fiscais da Administração Municipal do Lubango que agrediram fisicamente Joana praticaram o crime de ofensas corporais voluntárias de que resulta doença ou impossibilidade de trabalhar, que é punido com prisão e multa em diferentes graus de penas, consoante o tempo em que vítima fica impossibilitada de trabalhar. Deste modo, é crime a actuação INACEITÁVEL destes fiscais que, enquanto representantes de um órgão institucional, estavam também actuando como agentes do Estado. E ao Estado, através das suas Instituições e dos seus agentes, compete proteger as cidadãs e cidadãos de actos de violência, bem como velar para que os seus direitos sejam garantidos e salvaguardados. A nossa Constituição, na alínea b) do artigo 21.º (referente às Tarefas Fundamentais do Estado), estabelece que cabe ao Estado “assegurar os direitos, liberdades e garantias fundamentais” (negritado nosso); além disso, no n.º 1 do seu artigo 31.º, dispõe que “a integridade moral, intelectual e física das pessoas é inviolável”, acrescentado o n.º 2 do mesmo artigo que “o Estado respeita e protege a pessoas e a dignidade humanas”. Por isso, ABSOLUTAMENTE NADA justifica a forma como a Joana foi agredida.
Joana, infelizmente, soma às estatísticas e não é o primeiro caso deste tipo de violência. Ela foi vítima destes fiscais que devem ser devidamente responsabilizados pelos seus actos. Entretanto, é também vítima de um contexto político e social que não é equitativo; que não criou ao longo dos anos um Sistema de Protecção Social que dá reposta às necessidades das pessoas: até aquelas mais básicas como ter medicamentos num Posto Público de Saúde para fazer curativos a um ferimento.
Joana e muitas outras mulheres zungueiras e homens inseridos no mercado informal, fazem parte de um contexto sociopolítico que não criou alternativas em termos de emprego e de inclusão social. Fazem parte de um contexto cujas políticas públicas não têm tido impacto nas suas vidas e a cada dia, somando o contexto de crise económica que temos vindo a atravessar, a situação de precaridade socioeconómica em que se encontram se agrava.
Estas pessoas têm sido as principais vítimas da Violência Institucional no nosso país, que, dentre outras coisas, se manifesta através da omissão e da falta de resposta do Estado em relação às dificuldades que muitas cidadãs e cidadãos têm no acesso aos bens e serviços públicos como saúde, educação, empregos dignos, segurança pública, a possibilidade de ter Bilhete de Identidade, etc.
As agressões que Joana sofreu e que outras mulheres zungueiras têm sofrido, demonstram a presença do patriarcado nas nossas vidas na medida em que os agentes fiscais são sempre homens que batem em mulheres, que procuram exercer poder sobre elas por meio da força. E isso, mais uma vez, faz-nos referir a necessidade do debate sobre a forma como nas Instituições do Estado e nos representantes das mesmas as ideologias do Patriarcado estão impregnadas. A violência institucional alia-se à violência baseada no género e torna a vida das mulheres ainda mais difícil.
Temos todos de reflectir sobre isso e, sobretudo, buscar caminhos alternativos para uma mudança de quadro. Quantas mais mulheres terão de ser agredidas nessas condições para que hajam políticas públicas que promovam a justiça social de facto? Quantas mais pessoas neste país terão de viver em situação de precaridade socioeconómica para que se olhe para a realidade de vida difícil de muitas angolanas e angolanos? Quantas mais angolanas e angolanos não terão acesso sequer ao Bilhete de Identidade e ficarão privados de exercer plenamente a sua cidadania?
É preciso investir num Sistema de Protecção Social que seja capaz de amparar todas as angolanas e os angolanos, principalmente aqueles já vítimas de algum tipo de exclusão social. E isso é RESPONSABILIDADE do Estado, que precisa continuar a buscar e a investir em melhores políticas públicas (tanto sociais como económicas) para melhorar a condição de vida das pessoas. Uma responsabilidade que todos nós, enquanto cidadãs e cidadãos temos o direito e o dever de exigir.
É preciso continuarmos a marcha em busca da realização dos direitos humanos das mulheres e de todas as pessoas. Pela Joana e por todas e todos cujos nomes desconhecemos, mas que têm sido vítimas de um contexto sociopolítico que precisa ser transformado para o bem de todas as pessoas deste país.