Para além da sobrevivência: Políticas económicas para equidade e justiça
Em conversa com Âurea Mouzinho
Âurea Mouzinho (MSc.) é economista política de desenvolvimento, formada pela Universidade da Cidade do Cabo (UCT) e pela Universidade de Londres (Escola de Estudos Orientais e Africanos, SOAS).
O que é que podemos entender como políticas económicas?
São políticas económicas todas as intervenções do governo na economia, a fim de influenciar fundamentais económicos como a produção de bens e serviços, o desemprego, a taxa de inflação, entre outros. Em regra, as políticas económicas podem ser divididas em duas principais categorias: políticas macroeconómicas ou políticas microeconómicas, sendo estas últimas aquelas que dizem respeito à intervenção directa do governo para influenciar o desempenho de um sector específico da economia. Por sua vez, as políticas macroeconómicas são mecanismos usados pelos governos para influenciar o desempenho da economia em geral, podendo ser políticas fiscais e monetárias. Enquanto que as políticas fiscais têm que ver com alterações nas despesas ou fontes de receita do Estado, as políticas monetárias correspondem às mudanças nas taxas de juro, na quantidade de dinheiro, nas taxas de câmbio, entre outros aspectos, com o objectivo de influenciar o valor da moeda nacional.
Como é que as políticas económicas estão relacionadas com questões de justiça social?
Apesar destas divisões técnicas, as políticas económicas são interdependentes e até mesmo complementares, não podendo os governos simplesmente depender de uma ou de outra para o alcance dos seus objectivos económicos, sociais e até políticos. Neste sentido, as políticas económicas nunca são neutras, nem em princípio nem no seu impacto.
O nível de apoio que é dado aos diferentes sectores ou agentes económicos por meio de programas de alívio fiscal ou subsídios, por exemplo, reflecte a perspectiva do governo sobre a importância de cada sector ou grupo na economia. Do mesmo modo, quanto mais progressiva for a tarifa fiscal de um Estado, isto é, quanto maior for a proporção de impostos pagos pelas franjas mais ricas da sociedade comparada com as mais pobres, geralmente maior é a predisposição do governo em combater as desigualdades económicas, por meio de medidas indirectas de redistribuição de riqueza. Ainda, a abdicação do controle sobre a taxa de câmbio, por exemplo, tende a basear-se num entendimento de que o Estado deve minimizar a sua intervenção na economia, agindo primordialmente como promotor da iniciativa privada.
Os impactos de cada uma destas políticas variam de grupo para grupo, quer por design (i.e. a classe ou grupo específico que a política visa proteger) quer por conta da interacção das políticas económicas com aspectos estruturais como as desigualdades de género, de classe, geográficas, entre outras. Por isso, quer sejam macro ou micro, fiscais ou monetárias, as políticas económicas sempre espelham as prioridades políticas do governo e a sua visão sobre o que constitui uma sociedade ou economia justa.
Na tua opinião, quais são as principais políticas económicas gizadas pelo governo angolano ao longo dos últimos três anos?
Penso que nestes três últimos anos, as principais políticas económicas levadas a cabo pelo governo angolano estão compreendidas no Programa de Estabilização Macroeconómica (PEM), que desde 2018 tem motivado a implementação de várias medidas de reestruturação fiscal e monetária. Dentre estas, para mim destacam-se
a introdução do Imposto do Valor Acrescentado (IVA),
a liberalização da taxa de câmbio que resultou na rápida desvalorização do Kwanza, e
(iii) o ajuste no preço de água e energia e o iminente corte nos subsídios de combustível; tanto pelo facto de constituírem uma mudança radical na forma como o governo tem conduzido a economia até agora, bem como pelo impacto que elas têm tido na qualidade de vida dos cidadãos, sobretudo dos mais vulneráveis.
Até que ponto é que estas políticas dão resposta aos interesses das mulheres, sobretudo para as mulheres que actuam na economia informal?
Combinadas e agregadas às históricas faltas de investimento nos sectores sociais, estas políticas têm agravado a precariedade económica de muitas famílias e mulheres já em situação de precariedade económica, pois têm causado estagnação dos rendimentos reais, aumentos exponenciais do preço dos produtos da cesta básica, dos serviços básicos, do custo do transporte, etc.
Enquanto que o governo demonstra alguma intenção de mitigar esses efeitos negativos através de medidas como o Programa de Transferência Social Monetária, importa frisar que no presente momento o programa não abrange toda a população vulnerável (apenas cerca de 6 mil famílias em regime experimental), tampouco o valor do subsídio (cerca de 8 mil Kwanzas) é suficiente para suprir as necessidades básicas da mediana família angolana, que em regra tem o trabalho informal realizado por mulheres (zungueiras, vendedoras de mercado, cabeleireiras, etc.) como principal fonte de rendimento.
A pandemia do novo Coronavírus (COVID-19) tem agravado o quadro de precariedade de muitas destas mulheres, particularmente porque muitas actividades informais têm sido limitadas como forma de conter a propagação do vírus. Neste contexto, é inquietante a falta de um sistema inclusivo de protecção social que garanta alternativas de rendimento para todas as famílias em stress. É também preocupante que das 21 medidas económicas destinadas a colmatar o impacto da crise, a resposta à informalidade é vaga e marginal se comparada ao apoio dado às empresas e aos trabalhadores formais, resumindo-se na prerrogativa de continuar o processo de transição da informalidade para a formalidade.
Na minha opinião, o Programa de Reconversão da Economia Informal (PREI), apesar de apoiado pela Organização Mundial do Trabalho (OIT), peca por três factores fundamentais. Primeiramente, porque pressupõe uma homogeneidade no sector informal, principalmente por assumir que toda a actividade informal resume-se ao trabalho por conta própria: quando na verdade, a economia informal é caracterizada por múltiplas relações de trabalho e situações de detenção de capital, existindo não só “micro-empresários”, mas também trabalhadores por conta de outrem. Em segundo lugar, preocupa-me a intenção de formalizar para permitir o alargamento da base fiscal do Estado, assumindo que os actores no sector informal não pagam impostos de todo, quando na verdade contribuem directa e indirectamente através do IVA e das taxas de uso, da limpeza, etc., que muitas vezes lhes são cobradas para exercer a actividade em determinado lugar. Por último, o PREI baseia-se nas ideias de que a formalização automaticamente pressupõe protecção social, que é capaz de absorver todo o sector informal, e que o sector informal existe de maneira separada da economia formal. Estas conjecturas subvalorizam as relações de complementaridade entre a informalidade e a formalidade (ex. para a distribuição de produtos ao consumidor final); a crescente informalização dos processos de produção e precarização das relações de trabalho no dito sector formal; e a pouca capacidade da economia de gerar, a curto e a médio prazo, o nível de empregos capazes de absorver as milhões de pessoas que dependem da informalidade.
Que políticas económicas alternativas podiam ajudar a ultrapassar estes desafios?
Para mim, falar de políticas económicas que garantam direitos, justiça e equidade não é só uma questão técnica, mas também ideológica. Revejo-me nas correntes de pensamento económico heterodoxas que sugerem que as políticas económicas não precisam de ter como objectivo principal o crescimento económico (ainda que ilusoriamente definido como inclusivo e sustentável), mas sim a garantia de uma vida decente para a população, com acesso gratuito a serviços públicos de qualidade, emprego, segurança social, entre outros – isto é na ideia do Estado social. No mundo inteiro, e no nosso continente em particular, essa perspectiva tem sido cada vez mais marginalizada do debate político e até académico, em detrimento de um pensamento que defende a consolidação da economia de mercado, o que se traduz em um Estado mínimo e o fortalecimento do sector privado como o principal promotor do desenvolvimento económico e social. Esta corrente tende a defender que “não há alternativa”, tal como declarou Margaret Thatcher, antiga primeira ministra britânica pelo partido conservador nos anos 80. Por isso, discutir alternativas de políticas económicas é também um importante acto de resistência democrática.
De um modo geral, penso que qualquer política económica deve dar resposta à responsabilidade histórica de redistribuição real da riqueza e a realização dos direitos socioeconómicos. Em termos de políticas fiscais e monetárias existem várias possibilidades para atingir este objectivo, tais como: a priorização dos impostos de rendimento e propriedade como forma de aprofundar a base fiscal do Estado, ao invés da implementação de impostos generalizados e regressivos tal como o IVA; a revisão dos generosos benefícios fiscais garantidos às empresas estrangeiras no âmbito das políticas de promoção de investimento directo estrangeiro (que resultam em perdas substantivas de receitas, que poderiam ser utilizadas para custear programas socais mais amplos); a implementação de controles nas taxas de câmbio, de modo a impedir a rápida depreciação da moeda nacional sem compensação nos rendimentos reais. Há ainda opções mais ambiciosas como a definição de um salário mínimo suficiente e regularmente ajustado para garantir a subsistência das famílias, e a garantia de um mínimo de empregos públicos de base como forma de colmatar os efeitos negativos das políticas de controle da inflação.
É importante acentuar que não há nada de inviável ou improcedente nessas opções de políticas económicas. No meu entender, a sua não realização é fruto de uma priorização política dos interesses de certas elites, tanto a nível nacional bem como internacional, que tendem a resistir aos processos de redistribuição da riqueza. Por isso, penso ser indispensável que a demanda por políticas económicas alternativas faça parte de uma advocacia mais ampla por justiça social e económica, baseada num entendimento das diferentes estruturas, processos e sectores que impedem a realização de direitos e a promoção de equidade, e dos efeitos distintos de cada política nos diferentes grupos sociais.