As meninas quase da família
POR LEOPOLDINA FEKAMÃLE
Muitas e muitos de nós conhecemos alguém ou já ouvimos falar de alguém que adoptou uma criança para viver consigo em sua casa e lhe dar um lar. Já ouvimos falar de primas e tias que acolheram algum menor em casa por conta da condição social desfavorecida deste. A ideia de que as famílias africanas são acolhedoras e de que cabe sempre mais um, de certa forma, ainda prevalece.
Entretanto, no meio disso e mais especificamente, também creio já termos ouvido falar de casos de mulheres que supostamente adoptam meninas com as quais às vezes têm – ou não têm – algum laço parentesco para cuidar delas e dar-lhes uma vida melhor do que aquela cujas condições sociais anteriores não permitiam; mas no final acontece exactamente o oposto. Normalmente, vai-se buscar essas meninas no interior do país, nos locais a que comummente e de forma preconceituosa chamamos de “mato”.
Muitas mulheres, várias vezes, com as justificativas de dar novas oportunidades a essas meninas, como a de estudar, afastam-nas dos pais, trazem-nas para a “cidade” e o que acontece chegado à metrópole é o desfazer dos sonhos dessas meninas e dos próprios pais, pois, transformam-nas em empregadas domésticas não assalariadas. Falo reiteradamente de mulheres, pois são elas, na maior parte das vezes, que perpetuam esses ciclos; mulheres que por conta de se manterem activas no espaço público, nas suas carreiras e mesmo para não ter uma vida de trabalho duplo – entre o local de trabalho e a casa – vão buscar essas meninas para que no final elas, ainda pequenas, se transformem em mães dos seus filhos, ao mesmo tempo que são empregadas domésticas, fazendo praticamente todo o serviço que uma casa exige.
Não quero com isto dizer que as mulheres não devem almejar conquistar os espaços públicos, construir uma carreira profissional ou serem bem-sucedidas. O que se chama à atenção aqui é o facto de como se exploram asvidas de crianças, negam-se oportunidades a elas por conta de se obter sucesso lá fora. Vale a pena construirmos seja o que for em cima do sofrimento dos outros? Não seria melhor lutarmos por oportunidades iguais para todos e com isso evitarmos essas desigualdades?
Começa um verdadeiro inferno na vida de muitas meninas tão logo chegam à cidade e descobrem que a tia, a prima ou amiga chegada dos pais que as foi buscar para que estudassem e crescessem na cidade não é afinal a benfeitora como se fazia parecer: era só alguém que queria serviços domésticos gratuitos. E por não terem como se defender, porque os supostos benfeitores criam um ambiente de comunicação restrito entre elas e o mundo além das paredes de casa, então, acabam permanecendo largos períodos de tempo nessas condições. Algumas dessas meninas até chegam a ir à escola, mas todos os deveres de casa que têm de cumprir e toda a carga de trabalho que têm dificulta o processo de aprendizagem e assimilação do que lhes pedem na escola. Ninguém se consegue sentir bem e integrado num lar onde tudo que lhe é oferecido é uma vida dura e sofrida – e consequentemente se dificulta a integração na sociedade. Mulheres e homens que perpetuam esses ciclos precisam parar e ser cobrados por tais actos.
Precisamos começar a chamar mais à responsabilidade as pessoas que exploram crianças dessa forma e devemos denunciar se for preciso; precisamos cobrar a responsabilidade da sociedade; e precisamos cobrar a responsabilidade do Estado.
A sociedade precisa continuar o debate sobre repensar os papéis de género que reforçam e atribuem toda a responsabilidade de cuidar da casa e dos filhos às mulheres. A desconstrução desses papéis e a divisão de tarefas iguais no lar pode fechar essas portas de exploração de menores. Essa divisão gerará justiça dentro do espaço privado e poderá reflectir-se no espaço público. Os papéis de género, na conjuntura actual, não justificam a exploração de meninas, mas a sua desconstrução pode sim ser uma alternativa para acabar com isso. Entretanto, não nos esqueçamos nunca de que se não podemos cuidar ou ajudar então é melhor não nos propormos a isso. Não façamos aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem a nós.
O Estado precisa investir mais na Educação e na Formação das comunidades no interior do país, levar para mais perto a Escola, o Ensino, o Livro, o Lápis; levar para mais perto dessas comunidades as mesmas oportunidades que se dão aos cidadãos nos centros urbanos e evitar deste modo que as crianças saiam das suas localidades e venham ser exploradas longe de casa, quando tudo o que desejavam - e lhes é de direito - era formar-se. Todos, de alguma forma, precisamos nos engajar para acabar com esses ciclos que também são de violência.
Igualdade de direitos entre todos não se restringe às metrópoles, aos centros urbanos; as nossas práticas e os nossos discursos tanto políticos, sociais, feministas, culturais, etc., precisam extrapolar os espaços urbanos e chegar às pessoas que não têm os mesmos acessos que nós; precisam criar oportunidades de integração e, mais do que isso, integrar as comunidades do interior no desenvolvimento técnico, científico e profissional do país.
E, por fim, pensemos todos numa igualdade inclusiva - uma que, aliás, é pauta do feminismo. Pensemos e lutemos por uma sociedade onde ninguém tenha de ser explorado por conta da sua condição social ou biológica e sinta-se em qualquer canto desta imensa Angola uma parte importante dela.