Autarquias: qual é a fasquia?
POR ÂUREA MOUZINHO
Estou no Quénia. O segundo país Africano que mais gosto depois do Gana. Angola é casa, então é numero zero. Mesmo com todos os problemas, não há como escapar.
No último Domingo, almocei com um grupo de jovens quenianas e quenianos. Falamos de várias coisas: de comida, de economia e, inevitavelmente, de política. Sobre política angolana, de entre diferentes coisas, falei-lhes sobre as nossas autarquias. Disse-lhes, orgulhosamente, que teremos as primeiras eleições autárquicas em 2020. Disse-lhes, também, que o nosso Governo, e um grupo de pessoas defendem um processo de gradualismo regional, que se traduz no facto de o número de municípios que realizará eleições autárquicas ir se alargando num prazo de 12 anos. Isto é, o direito ao voto local será expandido gradualmente.
Quando acabei de explicar, os meus novos amigos e amigas olharam para mim como se tivesse vindo de outro planeta! Eles e elas que, estando na mesma faixa etária que eu, sempre votaram em eleições locais, provinciais e nacionais, não podiam imaginar que Angola, um país aparentemente rico, com muito petróleo, e que vende para fora a imagem da Marginal de Luanda que lhes parece Dubai em África, nunca tivesse tido eleições locais! Acharam, ainda, mais absurdo o uso da falta de recursos e quadros como justificativa para o gradualismo regional, dado que o Quénia, um país que nunca teve o nível de crescimento económico ou recursos que Angola teve nos anos áureos, tem eleições locais até nas mais remotas das suas 290 autarquias.
Fiquei fascinada com esta informação. Mesmo sem ignorar o facto de o Quénia ter muitos dos mesmos problemas que temos em Angola, como por exemplo um estado largamente ausente da vida da maioria dos cidadãos no que toca à provisão de serviços básicos, repressão política, restrições no espaço cívico e processos eleitorais tensos e contestados; fiquei deslumbrada com a existência de uma percepção diferente daquilo que é “normal” para outros jovens africanos no que diz respeito aos processos eleitorais.
O ano de 2018 está ser particularmente importante para muitos países africanos, que nunca tiveram eleições autárquicas ou estão a retomar às mesmas depois de observarem períodos de crise ou instabilidade política. Seguem-se, abaixo, alguns dos exemplos que considero ser importante referir :
- Em Fevereiro, a Guiné Conacri teve as suas primeiras eleições autárquicas desde o final da ditatura militar. Isto acontece, também, depois da crise de ébola entre 2013 e 2016, que ceifou a vida de muitos guineenses.
- Em Abril, a Gâmbia teve as suas primeiras eleições autárquicas desde a deposição de Yahya Jahme.
- No princípio deste mês, a Tunísia teve as primeiras eleições municipais desde a revolução em 2011.
Quando me apercebi deste quadro, comecei a pensar sobre o modo como falamos sobre as autarquias em Angola, principalmente sobre as fasquias que definimos e como se enquadram no padrão africano. Nesta análise, apercebi-me, primeiramente, que fazemos parte de um grupo reduzido de países africanos que são excepção à regra, no que toca à realização (regular) de eleições locais. Dentro da SADC, por exemplo, para além do Reino de eSwatini (antiga Swalizândia), que é um regime monárquico sem qualquer abertura democrática, só Angola não tem algum tipo de eleições regionais ou sub-regionais.
Para um país que desde 1992 se entende como Estado Democrático e de Direito, precisamos admitir que estamos, vergonhosamente, atrasados no processo de realização das eleições autárquicas. Mesmo fazendo os descontos da guerra, temos um atraso de 16 anos! Países mais pobres, e outros com histórias mais recentes de volatilidade politica, realizam ou já começaram a realizar eleições locais. A menos que estejamos dispostos a admitir que desde a independência tenhamos vivido sobre um regime político autoritário (tal como no Reino de eSwatini), não há justificativa possível para o atraso na realização de eleições autárquicas.
Mas já que existe um compromisso para com as eleições autárquicas em 2020, foquemos agora na questão do como, particularmente sobre a questão do gradualismo regional. Aqui, a fasquia africana está definida em autarquias globais, isto é, todos os municípios ao mesmo tempo. Na SADC, Moçambique e Lesotho são os únicos países que implementam autarquias parciais, permitindo eleições locais só nos centros urbanos. No caso de Moçambique, este tem sido um processo contestado, pelas mesmas razões que se disputa a proposta do gradualismo regional nas nossas futuras eleições autárquicas.
Precisamos deixar de reduzir a questão das autarquias à questão da capacidade de autogovernação dos municípios. Como tem dito várias vezes a companheira Sizaltina Cutaia, nas suas intervenções nas redes sociais e na comunicação social, esse foi o mesmo argumento utilizado pelo Estado Colonial Português para justificar o atraso da independência do nosso país. É necessário entendermos que as autarquias são, acima de tudo, uma questão urgente de descentralização do poder e da materialização da autonomia local. Da sua entrega, ou melhor, devolução, a quem realmente pertence: ao Povo Angolano. Esse simbolismo é importante, principalmente devido à nossa história de colonização e de uma guerra onde os interesses do Povo foram muitas vezes secundários.
Saindo de um contexto político fechado, precisamos reconhecer que é no poder local onde as angolanas e os angolanos depositam as suas esperanças de uma participação política mais activa, principalmente fora de linhas partidárias. Num contexto de impunidade, é no poder local onde as angolanas e os angolanos vêm alguma possibilidade de os seus representantes políticos serem responsabilizados, e pressionados a usarem o seu poder para atenderem às necessidades mais urgentes das suas bases. Num contexto de desigualdade, é no poder local onde diferentes grupos marginalizados podem ter os seus interesses priorizados, nem que seja só mesmo a nível local.
Poder eleger as suas ou os seus autarcas, é um direito fundamental que cabe a todos cidadãos e a todas cidadãs desta grande Angola, sem distinção de localização e sem mais atrasos. É urgente, e por isso deve ser garantido a todos os 162 municípios ao mesmo tempo. Esta sim deve ser a nossa fasquia!
A esta altura a leitora ou o leitor pode-se estar a perguntar, o que é que as autarquias têm a ver com o feminismo? Ora bem, se há uma coisa que tentamos evidenciar nos vários textos do Ondjango Feminista é que a pauta feminista não se limita à igualdade de género. Ela engloba a necessidade de se expandir, juntamente com esta igualdade, todos os direitos humanos das mulheres, incluindo os civis e políticos.
Sendo que mais de metade do povo angolano são mulheres, quando falamos em qualquer assunto que afecta o povo estamos a falar, automaticamente, de um assunto que afecta e diz respeito às mulheres. Assim, as autarquias são tanto uma causa feminista quanto a luta contra a violência baseada no género. Advogar para que elas sejam feitas de forma justa e transparente, é também parte de assegurar que os direitos das mulheres sejam respeitados, pois, como sabemos, os direitos são indivisíveis e inalienáveis.