Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres!

Foto da Kamy Lara

Foto da Kamy Lara

POR LEOPOLDINA FEKAYAMÃLE

Toda a jornada de activismo social em prol de uma causa, não importa qual seja, muitas vezes requer das pessoas que se propõem a passar por ela, retirar do seu tempo e espaço para dedicar atenção em largos momentos da sua vida à causa que defendem. O processo de constante consciencialização na jornada de activismo é um dos mais importantes pois, citando a feminista e filósofa Djamila Ribeiro, “ninguém pode querer legitimidade para falar sobre o que ignora e desconhece”.

E é com esta noção que, por um lado, nos propusemos a organizar a nossa primeira Escola Feminista cujo tema central foi “Feminismo: Bases para Teoria e Acção”. E, por outro lado (e aqui falo enquanto pessoa individual interessada na luta pelos direitos das mulheres), propusemo-nos a participar da Escola. E saímos da semana intensa de Escola com a profunda certeza de que precisamos “seguir em marcha até que todas sejamos livres”.

À partida, sem a total certeza de onde os caminhos nos levariam, entrámos para uma análise feminista sobre  o nosso contexto africano e mais especificamente o angolano que, na volta da viagem, acabámos conscientes de que algumas coisas começavam a mudar interiormente: em nós mesmas.

Aqui, é importante sublinhar que na Escola fizemos questão de separar a análise feminista da análise de género. Esta última muitas vezes domina o discurso feminista e percebemos a importância e a necessidade de nas nossas abordagens irmos para além dela. A análise feminista vai além da análise de género na medida em que nos leva a pensar e a questionar mais do que as desigualdades ou assimetrias entre homens e mulheres, buscando uma compreensão mais profunda sobre os vários sistemas presentes e que imperam nas sociedades, como por exemplo o capitalismo, o patriarcado, o racismo e o neocolonialismo. Além de buscar uma compreensão sobre estes sistemas, a análise feminista ainda identifica as várias formas, das mais subtis às mais explícitas, como estes se relacionam e oprimem as pessoas, sobretudo as mulheres. 

Percebemos também como pensar em Feminismo dentro de África implica ter em conta estes três sistemas: o (neo)colonialismo, o capitalismo e o patriarcado. E este “ter em conta” significa analisar a forma como os três sistemas influenciam e influenciaram as vidas das mulheres em África desde antes da nossa geração.

As nossas análises levaram-nos a vários recuos no tempo – na História – porque identificámos a importância de percebermos como muito do que enfrentamos e vivenciamos hoje está ligado ao passado. Por exemplo, a chegada do sistema colonial às sociedades africanas causou rupturas nos modos de organizações culturais, económicos, sociais e afectou inúmeras crenças espirituais, concepções de “género” e as relações entre as pessoas. Somos hoje os vários resultados de vários processos que começaram lá atrás e que nos fazem reproduzir modos de estar, de pensar, de olhar para nós e para o outro sob perspectivas que, muitas vezes, reproduzem preconceitos, discriminação e ideias com rostos neocoloniais.

Quantas vezes nos questionamos sobre o que é desenvolvimento ou, mais para outro plano, sobre quem dita o que é desenvolvimento? Quem dita a supremacia dos “países ricos sobre os pobres” ou, mais para outro plano, sobre como esses países ricos se constituíram ricos e supremos e os pobres continuam pobres? Quantas vezes nos questionamos sobre onde nos têm levado as nossas ideias de desenvolvimento e como o capitalismo – sempre impulsionado por um grupo de pessoas – usa essas ideias como instrumento para que se perpetuem cada vez mais os sistemas de classes, as assimetrias sociais e se explorem milhares de pessoas condenando-as a excessivas horas de trabalho e em simultâneo a milhares de quilómetros de distância da “tal qualidade de vida”? E quantas vezes nos questionamos sobre como a construção das ideologias em torno da divisão dos papéis de género, aceites como normais por muitos e muitas de nós, está ligada a vários sistemas que influenciam as desigualdades sociais?     

Olhámos também para o patriarcado – sistema de dominação masculina que legitima a opressão das mulheres a vários níveis – que nos define, limita e nos relega a posições de constante subalternização na sociedade e encontrámo-nos a nós mesmas imersas em mares cujas ondas, de forma agressiva, minam a nossa auto-estima, a nossa forma de ver o mundo e nos exploram intensamente enquanto mulheres. E somos exploradas do ponto de vista físico, psicológico e emocional através de ideias, valores, crenças, normas sociais e legais que limitam sempre a nossa liberdade.

Em várias sociedades e desde há muito tempo, fruto da relação entre os sistemas de opressão, o capitalismo, apropriando-se das ideias do patriarcado sobre “o lugar e papel da mulher”, explora as mulheres de várias formas, como por exemplo:

- Desvalorizando o trabalho de cuidado, que é maioritariamente exercido pelas mulheres (fruto das assimetrias nos papéis de género instituídas pelo patriarcado, onde se define que a responsabilidade da casa e dos filhos é principalmente das mulheres); e desvaloriza este tipo de trabalho porque este não gera lucro, facto que vai contra a lógica do sistema capitalista;

- Usando o trabalho de cuidado para relegar as mulheres a posições inferiores no mercado formal de trabalho, alegando por exemplo que como elas têm filhos e são as principais responsáveis pelo lar não têm o mesmo desempenho que os homens e, portanto, estarem nas piores posições e maioritariamente nas posições inferiores a nível profissional justifica-se – isto quando, em muitos casos, não nega mesmo o acesso ao mercado;

O segundo ponto acima tem impactos fortes a nível económico na vida das mulheres, sendo o principal deles é mantê-las em constante dependência dos homens, às vezes de forma parcial e outras de forma total mesmo. E assim, aliando-se a outros factores da socialização, perpetuam-se os ciclos de desigualdades e exploração.

E em contextos como o do nosso país, onde a maior parte da população está empregada no mercado informal e, desta população, a maior parte são mulheres, estas têm de lidar com desafios no quotidiano como leis que não as protegem por não estarem inseridas no mercado formal (sem direito a licença de maternidade, segurança social, salários dignos, etc.), elevada instabilidade profissional, um Estado que não as ampara e um conjunto de políticas públicas que só lhes dificulta mais a vida, ao mesmo tempo que têm de lidar com parceiros em casa que muitas vezes são sustentados por elas mas que pelo patriarcado têm o estatuto de “provedores” e as submetem a situações de violência física e psicológica, dentro e fora de casa.  

A Escola Feminista foi uma jornada intensa. Não se esgota tudo o que abordámos e sentimos nesses exemplos que dei. Termos tido a oportunidade e o privilégio de conviver com várias mulheres, de vários locais diferentes dos nossos mas todas fazendo parte do mesmo país, durante vários dias, permitiu-nos criar ligações com “a Outra” e reflectir na imagem deste que muitas vezes pode ser o reflexo de nós mesmas. E mesmo quando não é o nosso reflexo não deixa de ser importante, significativo e pode sempre acrescentar coisas à nossa vida.

Muito do que sentimos e as reflexões com as quais nos deparamos levaram-nos a reforçar a certeza de que é preciso continuar a marchar e, dentre vários significados, entenda-se também esse “continuar a marchar” como continuar na luta pelos direitos das mulheres, porque ainda é necessário, ainda temos caminho a percorrer. Apesar dos vários avanços nesta marcha a nível do mundo, de África e do nosso próprio país, ainda existem milhares de mulheres em distintas situações de opressão, de exploração, de diversos tipos de violência e não nos podemos calar enquanto existirem tais situações.

Milhares de mulheres na história do mundo, de África e de Angola resistiram contra os diferentes tipos de opressão, desde antes de nós. Se estamos aqui hoje e temos algumas oportunidades de nos podermos mover e mobilizar é também graças a elas. Por isso, entendemos a necessidade de continuarmos esta marcha. E é uma marcha que demanda busca de conhecimento constante, de análise sobre os vários sistemas que regem as sociedades e como estes mudam com o tempo, readaptam-se e conectam-se. Daí a importância de iniciativas como a Escola Feminista.

Seguir em marcha significa ter esperança, partilhar esperança, juntar as mãos e colocar, passo a passo, blocos nesse processo de construção de uma sociedade melhor e mais justa para as mulheres e em larga medida para todos. Sim, seguiremos, rumo à liberdade!   

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