Parem de Matar as Mulheres
POR LEOPOLDINA FEKAYAMÃLE
Estes têm sido dias difíceis. Na verdade, para nós mulheres, muitos dias são difíceis e dolorosos porque ainda vivemos em contextos onde se justifica quase sempre, de uma ou de outra forma, todo o tipo de violência contra nós. E nestes últimos dias, em particular, ficou tudo ainda mais penoso por termos de lidar com as reacções que vieram à tona depois do caso de Carolina…
Para quem ainda não sabe, Carolina era uma jovem advogada de 26 anos que foi morta pelo marido de forma cruel. Depois de algum tempo de fingimento da parte do marido e depois de investigações do SIC (Serviço de Investigação Criminal) o indivíduo confessou o crime e o caso veio a público pelos vários órgãos de comunicação social do nosso país. E é com as reacções a este caso que percebemos como ainda temos um longo caminho a percorrer na luta pelos direitos das mulheres em Angola.
Nas redes sociais, mais particularmente no Facebook, os comentários dos homens a justificarem o acto do marido de Carolina revelam um nível de misoginia incrível, de perder as forças, de perguntarmo-nos “em que país estamos?” e de doer mesmo. A normalização da violência física e psicológica contra as mulheres tem níveis assustadores e angustiantes. A forma livre, tranquila e às vezes com alguma satisfação com que muitos homens têm dito que ela “mereceu”, que “mulher que não se põe no seu lugar tem mesmo de acabar mal”, que “mulher merece levar correctivos mesmo para aprender a ficar no seu lugar”, ou ainda a forma como dizem “agora estamos a matar se não se comportarem” é assustador. Tudo isso demonstra como nunca estamos totalmente seguras em lado nenhum! Parece que nem nas nossas casas estamos totalmente seguras. Basta ser mulher para se ser um potencial alvo de “violência justificada”.
Muitos desses homens a destilarem ódio são pais, maridos, irmãos, tios, primos, amigos, filhos e a pergunta que fica é como será a vida das mulheres que estão a volta desses indivíduos?
A violência contra as mulheres é real, é mesmo. Não é coisa da cabeça de feministas, não é invenção ou discurso vazio: É REAL! Carolina, infelizmente só acrescentou as estatísticas, houveram muitos outros casos antes dela que vieram a público e existem milhares de outros casos que não vêm a público. É um problema que está aí à porta, aos nossos olhos. E é um problema que extrapola relações entre um ou outro casal: é um problema estrutural. Há uma estrutura que dita e relega as mulheres a papéis de subalternização que as torna em potenciais alvos de violência de todos os tipos e a todos níveis. Esta estrutura de supremacia masculina que paira sobre nós e muitos negam existir, e que não é invisível, faz isto: mutila e destrói as vidas das mulheres e MATA!
Os desequilíbrios de género que regem os nossos contextos onde o “homem é o que dita as regras e olha para a mulher como propriedade dele” estão na base de muita dessa violência. É o facto de se olhar para a mulher como aquela que deve ser “submissa, com voz secundária, sem poder de decisão, sem autonomia, liberdade para ser e viver segundo seus princípios” que reflecte muito desta violência.
Educamos as meninas desde cedo a olharem para si mesmas como o “segundo sujeito” ou o “sujeito subentendido”, aquele que se tem de ocultar em função do homem que é visto como o primeiro sujeito. Essa secundarização das mulheres em função dos homens faz com que os “primeiros sujeitos” se achem no direito de tratar como quiserem as mulheres e até de matar… sim, matar e ainda se justificarem, e pior, serem justificados.
O problema é enorme, vai além de simplesmente “não se querer sair de relacionamentos abusivos” como muitos têm afirmado. Permanecer em relacionamentos abusivos também é reflexo de uma socialização que em primeiro diz “mulher deve fazer de tudo para conseguir um homem/ marido – mesmo que isso signifique anular a si mesma”; e em segundo diz que após ter conseguido o homem/marido “deve fazer tudo para mantê-lo por perto, mesmo que esteja num relacionamento abusivo”. E esse ciclo de socialização é perpetuado e justificado pela sociedade – família, igreja, amigos, etc. A sociedade legitima a violência contra a mulher, a culpabiliza e abraça os agressores.
É importante continuar o debate sobre os papéis de género, sobre o que é ser “mulher e homem”. Mais do que continuar o debate, precisamos repensar esses papéis: é tudo uma construção social e o que se constrói pode ser desconstruído. Não podemos continuar a reproduzir padrões que além de ferir a vida das mulheres e as suas liberdades individuais também matam.
Não podemos continuar a invisibilizar a violência contra as mulheres com discursos de que “toda a violência importa” ou “homens também são violentados” ou ainda “mulheres estão a se fazer de vitimas”. Mulheres têm sofrido por longos períodos de tempo por conta dessa invisibilização e justificação de que seus corpos podem ser feridos, maltratados, violentados e mortos. Tudo porque são vistas como sujeitos secundários que devem ser dominados. Chega!
Nós, mulheres singulares e também enquanto colectivo, vamos continuar a gritar ‘parem de nos matar’ e de ‘ferir a nossa existência’. Queremos leis que nos protejam e sejam aplicáveis de facto, queremos políticas públicas que tragam aos debates e às instituições o respeito da nossa humanidade. Queremos uma sociedade onde não tenhamos medo de sair à rua! Vamos continuar a reivindicar uma sociedade onde tenhamos as nossas liberdades de ser, de sentir, de andar e pensar como quisermos. Vamos continuar a reivindicar uma sociedade onde possamos viver em segurança.