Que as nossas vozes sejam radicais, sempre
POR LEOPOLDINA FEKAYAMÃLE
Um dos pontos centrais das lutas pelos direitos das mulheres é trazer acima as vozes das próprias mulheres, quebrando assim o longo histórico de negligência em relação a estas mesmas vozes. E ao trazer essas vozes e narrativas, afirmamos o direito de contarmos as nossas próprias histórias. Não só contá-las, mas também dar-lhes a importância e o peso que muitas vezes lhes é retirado.
E, nesse processo de trazer vozes acima, politizamos questões relativas a injustiças de que somos alvo enquanto mulheres, enquanto grupo social que tem sofrido, historicamente, vários tipos de opressão e violência só por sermos mulheres. Nesse processo, reivindicamos direitos, espaços, lugares de fala e de acção que são nossos mas que nos foram e continuam sendo negados.
Porém, a cultura de descredibilizar as mulheres é tão forte que se procuram sempre formas de pôr em causa o que nós dizemos. E isto é feito de várias formas, destaco duas aqui: a primeira tem a ver com usar dados da vida pessoal das mulheres para se contestar a legitimidade delas de falarem por si mesmas contras as injustiças que sofrem; a segunda é usar adjectivos como “extremista” e “radical” para silenciar a fala ou descredibilizar a opinião e as reivindicações das mulheres em relação a assuntos que as afectam directamente. Na ausência de argumentos para contrapor, o que se faz, por exemplo, é alegar que “a mulher está frustrada por ter sofrido alguma decepção e só por isso se levanta para reclamar das coisas”.
Entretanto, não é só a ausência de argumentos que faz um grosso enorme de pessoas procurarem meios para descredibilizar as falas das mulheres. Faz-se isso exactamente porque existe um problema de exclusão, de subalternização, de não se olhar para as mulheres como sujeitos de si mesmas e de não se levar em consideração aquilo que elas dizem mesmo quando estão a chamar à atenção, a denunciar e a expor os mais variados tipos de violência que sofrem, ou quando chamam à atenção para problemas sociais. As tentativas de silenciar mulheres reforçam a necessidade e a legitimidade das nossas lutas, e demonstram que existe sim elevada negligência e descaso em relação a opressão do sistema patriarcal que actua sobre as vidas das mulheres de múltiplas formas.
Se é mais fácil buscar “razões” – e sempre as mais absurdas – na vida das mulheres para dizer que elas não deviam estar a falar porque são “assadas ou cozidas”, em vez de se olhar para os problemas sobre os quais elas chamam à atenção, então, o foco do questionamento não são essas mulheres. O ponto fora do lugar não são essas mulheres que legitimamente se levantam para dizer que estão cansadas de serem agredidas, assediadas, violentadas por qualquer um que se ache no direito de o fazer. O que tem de ser questionado é a atitude – e o que ela representa – dos que se levantam para dizer que as mulheres não deviam falar dos problemas que as afectam enquanto grupo e lutar para acabar com eles.
Até quando nos vão procurar silenciar e deixar o patriarcado impune? Até quando nos vão pedir para calar enquanto deixam o patriarcado gritar em alto e bom som que se não somos submissas temos de apanhar e muitas vezes morrer? Até quando vão usar sordidamente elementos da vida pessoal das mulheres para as atacar? Até quando vão querer que continuemos quietas enquanto nos matam aos poucos com cada palavra, cada bofetada, cada espaço negado, cada acesso negado, cada direito negligenciado?
O grosso de pessoas que se levantam e fazem campanha para silenciar e descredibilizar as vozes das mulheres, não pára para pensar que o que elas estão a dizer é que a maioria das violências que lhes são direccionadas têm impacto significativo nas suas vidas a nível social, político e económico.
O quotidiano das mulheres, pelo mundo, é marcado por assédios nos espaços públicos e privados, abuso sexual, agressões físicas e psicológicas, negligência nas questões de saúde reprodutiva e sexual, muitas vezes descaso institucional em relação à pobreza que afecta mais as mulheres do que aos homens, indicadores elevados de difícil acesso à educação mais para as mulheres do que para homens, mulheres sendo vendidas em menoridade ou empurradas para casamentos infantis sem poder para sair desses ciclos de abuso, mulheres sendo maioritariamente socializadas para os trabalhos domésticos e de cuidado fazendo deste modo muito mais esforço e tendo mais horas de trabalho, mulheres sendo mortas pelos namorados ou pelos maridos o tempo todo. E ainda acham que nos devíamos calar?
A nossa existência tem sido atacada e importunada de todos os lados. E quando os sistemas de opressão – patriarcado, racismo, capitalismo, neocolonialismo – se congregam, fica tudo pior. Temos de lidar de forma mais intensa com a opressão patriarcal e suas regras ditando como devemos ser, como nos devemos comportar para depois se decidir se cabemos ou no pacote de “santas”, ou no pacote de “putas”; temos de lidar com a exploração capitalista que nos puxa para o trabalho no espaço público ao mesmo tempo que, por exemplo, se reforça a desvalorização do trabalho de cuidado e doméstico maioritariamente reservado a nós; quando somos negras temos de lidar com o racismo que cria hierarquias sociais e nos relega às posições menos favorecidas na sociedade em função da nossa cor não ser “o padrão”; e temos de lidar com políticas públicas com influências e rostos neocoloniais que nos dificultam mais a vida, o dia-a-dia, afectando as dinâmicas políticas e sociais dos nossos contextos.
Como não se levantar para falar por nós? Para trazer à mesa todas estas questões que nos afectam em grande medida enquanto grupo social? Como querem que nos calemos sempre? Não, não nos calaremos mais. Não mais! Não é justo para nós nem para as futuras gerações de meninas e mulheres. Temos muitas dores em comum, temos muitas feridas, feridas históricas e que precisam ser curadas e por isso estamos aqui, erguendo vozes.
E ao longo deste caminho nos têm chamado de “extremistas” e “radicais”. O curioso é que, quando mulheres são mortas ou “corrigidas” com violência porque não souberam ser “obedientes e submissas”, não se chama aos agressores “radicais”. Então, porque é que nos apontam o dedo e nos dizem isso?
Por várias razões, desde o facto do termo radical que não tem nada a ver com “sair por aí a matar pessoas” ter sido associado a significados negativos, até ao facto de que as pessoas muitas vezes não pensam, não questionam e simplesmente reproduzem preconceitos porque é mais fácil manter o status quo e posições de privilégio, sem prestar atenção a como isto afecta a vida de outras pessoas.
Pois bem, diante de um mundo onde mulheres são mortas o tempo todo e são alvos de pancadaria, ser radical ao protestarmos contra isso é o mínimo que podemos ser. Ser radical é analisar as origens das opressões, é olhar para a raiz dos problemas, é entendermos enquanto mulheres as raízes dos males que nos afectam e trazer isso ao de cima, aos olhos, para a seguir criar estratégias para solucionar os problemas que nos afectam e causar mudanças sociais. Então sim, não tem mal algum em ser-se radical! O nosso radicalismo será sempre lutar por justiça e por um mundo melhor para meninas e mulheres.