Sector Informal e Covid-19: as mulheres como grupo mais vulnerável
Por Leopoldina Fekayamãle
Fotografia: Selma Fernandes
Nessa altura “do campeonato” a maior parte de nós já deve saber que foi decretado Estado de Emergência, no passado dia 27 de Março, como uma das medidas institucionais para conter a cadeia de transmissão da Covid-19. Este vírus atingiu proporções de contágio que ninguém estava à espera, ultrapassou fronteiras e quando “nos caiu a ficha” estávamos todos, um por pouco por todo mundo, a adoptar medidas de isolamento social como uma das principais formas de o conter.
Entretanto, o que a presença deste vírus tem vindo a fazer também é pôr à prova os vários sistemas de saúde de diferentes países pelo mundo. Para o caso do nosso país, a presença deste vírus não só tende a pôr à prova o sistema de saúde como expõe as condições de vulnerabilidade socioeconómicas de uma boa parte da população. E é aqui, nessas condições de vulnerabilidade socioeconómicas, que nos preocupa em particular as condições de muitas mulheres em Angola e a violência que têm sofrido.
Importa realçar alguns dados sobre estas condições que são apresentados em estudos feitos nos últimos tempos. No geral, segundo um relatório [ver Nota 1] da OIT (Organização Internacional do Trabalho), 94% da população angolana participa na economia informal; também dá conta de que a população que recorre preferencialmente ao mercado informal para adquirir bens varia de 44% a 66%. O mesmo relatório indica que o sector informal angolano emprega 62,8% da população economicamente activa. Dentro destes dados, particularizando a situação das mulheres, o INE (Instituto Nacional de Estatística) [ver Nota 2] indica que as mulheres dominam o sector informal fazendo dentro dele um total de 86%. Ou seja, dos 62,8% da população empregada no sector informal a maior parte são mulheres. Sendo que as mulheres estão maioritariamente empregadas no sector informal acabam por estar vulneráveis a elevada inconstância profissional e não têm acesso aos direitos aplicáveis na legislação em vigor como, por exemplo, a licença da maternidade, segurança social, salários dignos e fixos ou outro tipo de benefício que um contracto formal com uma entidade empregadora pode proporcionar.
O Estado de Emergência implica um isolamento social que é necessário, mas que não pode ser adoptado por uma boa parte das mulheres neste país, em função das suas condições sociais e económicas. Logo, entre ter de ficar em casa para não se expor ao vírus, não pegar a doença que dele deriva, e sair para conseguir algum pão para dar de comer aos filhos, muitas mulheres só têm como opção ir mesmo à rua. É certo que o decreto de Estado de Emergência não proíbe o comércio informal e a venda ambulante, apenas restringe. No entanto, a aplicação e a fiscalização do mesmo tem gerado uma onda de violência por parte das forças policiais e militares sobre as pessoas que saem à rua para ganhar o seu pão, em particular mulheres. Vários vídeos têm circulado nas redes sociais denunciando e expondo abusos e violência absolutamente condenável e injustificável da parte dos órgãos de segurança. É preciso acautelar isso. Muitas das mulheres e homens inseridos no mercado informal, por esta altura, já devem estar a sofrer com os efeitos deste Estado de Emergência que reduziu em grande medida a clientela, o que deve estar a ter um grande impacto nas mesas das suas famílias. Somar a isto mais violência dos órgãos de segurança do Estado, quando este os devia proteger principalmente neste momento, só agrava mais a sua situação de vulnerabilidade.
O momento actual tem de nos fazer pensar nas políticas públicas que têm sido definidas para o sector social de um modo geral e, em particular, para as mulheres. Realizou-se o Censo não faz muito tempo, dentre outras coisas este mostrou-nos que as mulheres são a maioria no país, estão em piores posições socioeconómicas, são alvos de vários tipos de violência e os principais alvos da violência doméstica. Por isso, urge tomar medidas reais para melhorar as vidas dessas pessoas. Se numa altura crítica como esta algumas de nós têm de sair à rua porque o contrário implicaria não ter o que comer, isso tem de nos fazer pensar no tipo de sociedade que temos e, principalmente, os órgãos de decisão do Estado têm maior responsabilidade de pensar e procurar mudar este quadro social daqui para frente.
O momento actual tem de nos fazer enxergar de forma séria a vulnerabilidade de muitos dos nossos e não ser usado para mais atentados aos direitos humanos como já começou a acontecer com a violência policial e militar. É importante conter o vírus sim e impedir possíveis cadeias da sua transmissão, mas é importante também assegurar que neste processo não marginalizamos e não violentamos mais quem já tem sido marginalizado, já tem tido uma vida dura e cheia de diferentes violências. O papel dos órgãos de segurança é exactamente garantir que as pessoas fiquem seguras, sintam-se seguras e tenham onde recorrer caso precisem de protecção.
Nos próximos dias deste Estado de Emergência queremos contar com medidas institucionais que por um lado impeçam a violência da parte dos órgãos de segurança e, por outro lado, garantam de forma efectiva que não falte o que comer às famílias que dependem do comércio informal e da venda ambulante para a sua subsistência. Se importa preservar a vida contendo a pandemia causada pelo Covid-19, importa também preservar os direitos humanos e a vida daquelas e daqueles que todos os dias arriscam-se a sair à rua exactamente para lutar por ela.
Nota 2: https://ivairs.wordpress.com/2018/08/01/mercado-de-trabalho-angolano-e-dominado-pelo-comercio-informal/