Um novo olhar sobre nós
A música tem um percurso de milhares de anos de presença na vida dos seres humanos. E nesse percurso, várias são “as missões” que esta já teve ao longo da história da humanidade, desde deleitar, apaziguar os espíritos, distrair, passar mensagens ou ideologias que um outro pretendia, etc. Hoje, a música continua a passar mensagens de todo tipo e une povos, culturas, ligando as pessoas de vários cantos do mundo.
Toda essa introdução sobre a música vem a propósito de convidar-vos a analisar por partes, neste texto, a letra de uma música da cantora angolana Edmázia Mayembe. O título da música é “beijinho no ombro”, penso que muitas e muitos já devem ter ouvido pois tocou – e tem tocado – em vários programas da rádio e da TV angolana. Antes de avançar, gostava de deixar claro que não se trata aqui de um ataque pessoal à cantora; trata-se de trazer à reflexão algumas questões ligadas as construções sociais em torno das mulheres. A primeira estrofe da música é esta que vem já a seguir:
Beijinho no ombro é tudo que eu mando
Ele está na minha
Minhas irmãs eu lamento
Vocês são as mais finas, não vos escolheram porquê?
Não estão com ele porquê?
Me façam entender.
“Beijinho no ombro” é uma expressão brasileira que se tornou bastante conhecida por meio de uma música e é usada para demonstrar ou “atirar” à cara a superioridade de uma pessoa sobre a(s) outra(s). É uma expressão que denota triunfo sobre quem é considerado “invejoso ou inimigo”. No caso específico dessa música, é uma mulher que “manda um beijinho no ombro” às outras mulheres por ter conseguido ficar com o homem que estas queriam também, ela diz “ele está na minha” e ainda pergunta “… não vos escolheram porquê?”. Nas minhas pesquisas sobre esta expressão, um dado curioso que notei foi que, normalmente, homens não a usam; é uma espécie de frase de “afirmação” entre algumas mulheres. E apesar de ter sido criada no Brasil, muitas pessoas em Angola adoptaram-na.
Essa estrofe traz à reflexão um fenómeno que, infelizmente, ainda se sente muito no seio de muitas mulheres que é a rivalidade feminina. Essa rivalidade é fruto, em grande parte, do processo de socialização pelo qual todas nós passamos. Este processo, embora tenha diferentes nuances e algumas excepções ligadas ao tempo e aos contextos, tem traços comuns e significativos. Por um lado, estes traços ensinam-nos que “devemos sempre estar em posições inferiores” em relação aos homens fazendo tudo para agradá-los, por outro lado, ensinam-nos que “faz parte da nossa natureza andarmos em rivalidade com outras mulheres por tudo e nada”. Vezes sem conta ouvimos frases do tipo “onde tem mulher tem confusão” ou “mulheres nunca se entendem” ou “mulheres estão sempre a competir umas com as outras para ver quem é melhor”, e mais tantas outras frases na mesma linha.
Estas frases têm dois lados. O primeiro é o que, infelizmente, demonstra que existe de forma abstracta essa rivalidade feminina e se fomenta isso de várias formas no dia-a-dia. Muitas vezes, na forma como olhamos para a outra pessoa e como formamos preconceitos negativos sobre outrem acabamos por fomentar isso. No entanto, existe um outro lado que se opõe a essas frases e a prova dessa oposição é, como me disse a mana Xano Maria uma vez, que “se as mulheres realmente não se entendessem e onde elas estivessem fosse sempre só confusão, então, as praças não existiriam; os mercados não existiriam. As mulheres que trabalham e cooperam juntas nesses locais, que se protegem e se ajudam servem para nos ensinar a repensar essas ideias” e a pensar novos olhares de umas para as outras.
Importa repensar a nossa linguagem. Muitas vezes, não percebemos como a linguagem tem poder, como tais frases passam ideias fortes e ficam no nosso inconsciente e depois originam vários conflitos no quotidiano fazendo com que gastemos tempo e energia nesse mar de competições inúteis.
Um dado bastante importante de se reflectir que sobressai desde a primeira estrofe até ao fim da letra, e que constitui o foco de todo o conteúdo da música, é que tudo gira em torno de “se conseguir ou ser escolhida por um homem”. Toma-se esse homem como o bem mais precioso de todos e que está no topo, enquanto aqui em baixo mulheres lutam para serem dignas de fazer parte das escolhas dele; lutam para que ele as veja e as eleve para o topo com ele. Tudo isso reflecte debilidades no amor-próprio e certa carência afectiva. Mas, essencialmente, tudo isso reflecte como socialmente projecta-se a vida das mulheres em função de um homem, de ter ou ser escolhida por um homem. Não importa o que sejas, o que faças, qual a tua posição social ou académica, vão-te sempre definir em função do “macho” que te for acompanhar ou em função de não seres acompanhada por um macho. Entretanto, essa definição não tem de prevalecer: nós podemos tomar as rédeas das nossas vidas e nunca é tarde para nos redefinirmos.
A música continua com a segunda estrofe que diz o seguinte:
Tá duvida, se belisca ya?
Tá doer, mas acredita ya?
Ele gostou do meu sweeg humilde!
As duas primeiras perguntas desta estrofe passam as ideias de “EU SOU mais do que vocês” por isso “Ele gostou do meu sweeg humilde”. Vem aqui acima, mais uma vez, a questão de tudo girar em volta de um homem. Como se todo “o ser”, toda “a humanidade” nas mulheres é, sobretudo, mais válida quando um homem gosta ou a escolhe. Perdemos tanto tempo da nossa vida nesse processo de tentar “ser a escolhida”, gastamos tanto de nós mesmas, tanto do nosso potencial nesse caminho, gastamos tanta energia e acabamos por não cuidar de nós, do nosso interior. Até que ponto esse desgaste vale a pena?
A música continua com o coro e logo a seguir a última estrofe:
Elas vão se morder
Vão bater na pedra
Vão falaram mal de mim
Quando souberem que estamos juntos.
As Top se escolheram e eu longe de mim
Mais pra surpresa delas
Fui a escolhida no final
No final.
Do topo da montanha a que foi “elevada” diz que as outras se “vão morder, bater na pedra e falar mal” quando souberem que ela foi “a escolhida no final”. Eu pergunto-vos para quê tudo isso? Que utilidade prática têm essas situações na nossa vida?
Ensinaram-nos que as outras mulheres são sempre as inimigas, as gatunas, as invejosas, as que nos querem fazer ver e esfregar na nossa cara o seu batom ou aquele vestido; as que ficaram com “os melhores homens” e são mais dignas que outras, ensinaram-nos: sei bem. Mas é mentira, acreditem. Não estou a justificar o lado mau que as mulheres tal como os homens por serem seres humanos podem ter em si mesmos, mas estou a dizer que nenhuma mulher nasceu potencialmente sendo uma inimiga da outra ou sendo um alvo a abater como nos ensinam. Também estou a dizer que aprendemos de várias formas, e às vezes nas coisas pequenas, a olhar mal e gratuitamente outras mulheres. Planta-se a rivalidade feminina e passamos a crer que as outras são o nosso problema, mas, no final, nem são.
Já vivemos num contexto social e cultural difícil para as mulheres, temos de lidar diariamente com situações que nos afectam a todas, então sairíamos a ganhar se transformássemos ideias que fomentam rivalidade em ajuda mútua. Não estou a dizer que vamos sair por aí a romantizar ou a santificar as outras mulheres, estou a propor, a redefinição dessas ideias e padrões que só nos prejudicam e nos atrasam.
Tudo o que desejo é que as mulheres que perderam o amor-próprio o resgatem; aquelas que o construíram com base em odiar outras o reconstruam de formas diferentes e em paz. Que no nosso dia-dia sejamos mulheres que acreditem em si mesmas e nas outras, que encontrem formas de trabalhar umas com as outras em prol de uma sociedade onde haja respeito e solidariedade entre todos. O que vos proponho é que construamos um caminho diferente, um caminho que ressignifique os padrões que nos foram impostos e que nos definem sem nos dar voz.
Foto de capa: Fonte