Respeito à vida!
POR LEOPOLDINA FEKAYAMÃLE
Recentemente, num desses vaivéns em que a vida às vezes nos coloca, dei por mim a ouvir uma palestra sobre prevenção da gravidez ministrada num centro de saúde, onde me encontrava na sala de espera. A palestra, segundo o que me disseram depois, fazia parte de uma das estratégias de difusão de informação do Ministério da Saúde, mais especificamente no que tange a saúde reprodutiva. Isso fez-me reflectir durante muito tempo sobre como precisamos mais e mais de falar sobre “autonomia e liberdade sobre o próprio corpo”, por um lado, e, por outro, falar sobre “respeito à vida”.
A palestrante, que era uma enfermeira encarregada de passar pelos hospitais e centros de saúde pelas manhãs e falar sobre vários temas, depois de cumprimentar, começou assim o seu discurso: “Os médicos estão chateados com as nossas mulheres e a reclamar muito do facto de muitas engravidarem muito pouco tempo depois de um parto recente. Algumas até, depois de seis meses, já aparecem novamente grávidas. Outras, mesmo depois de uma cesariana e com as feridas desse processo mal cicatrizadas, aparecem pouco tempo depois grávidas. Não pode ser assim. Isso é prejudicial à saúde. O corpo precisa repousar e recuperar depois de uma gravidez, pelo menos dois anos de descanso, para não correr riscos de ter problemas graves no sistema reprodutor e para preservar a própria vida.” Além destas coisas, a enfermeira disse outras na sequência de preservar a saúde e a vida das mães.
Depois disso veio o momento que me chamou mais à atenção e é o motivo deste texto: o momento de perguntas e intervenções. Neste, várias mulheres levantaram a questão da falta de autonomia e poder sobre o próprio corpo: “Nós não podemos dizer não aos nossos maridos, porque eles não deixam e não entendem que depois do parto precisamos de repouso e o corpo precisa recuperar-se”, disse uma das intervenientes. Outra disse “Enfermeira, particularmente sei dessas coisas porque ouvi já inúmeras palestras sobre isso, acredito que outras irmãs aqui também já ouviram, mas o problema não é só nosso, não é só porque nos queremos encher de filhos que os temos, se dependesse só de nós teríamos um ou dois no máximo e com o devido tempo de diferença para o corpo se recompor. Mas os nossos maridos não aceitam um não, parece que nem temos voz e nem importa se vamos ficar mal de saúde depois. Muitos pensam que quando falamos sobre a necessidade de haver pausa nos filhos é tudo desculpas para não cumprir com os deveres de mulher. Além disso os nossos maridos têm o apoio das famílias para nos fazer pressão, ficamos sem alternativa e no final das contas somos mulheres e temos de obedecer”.
Outras mulheres levantaram-se e expuseram inquietações semelhantes, outras simplesmente concordavam com sinais e se mostravam representadas na fala das outras.
Ouvir estas mulheres fez-me pensar naquelas que não ouvi e que passam pelo mesmo – é sempre difícil não pensar nas mulheres que não podem falar. Gostava que reflectíssemos em como a questão da autonomia e liberdade sobre o próprio corpo está intimamente ligada à saúde e bem-estar físico - sem descorar do bem-estar psicológico. Decidir sobre o que fazer com o próprio corpo e ter autonomia sobre ele faz parte dos direitos fundamentais de qualquer ser humano. Mas a história tem-nos mostrado que nesse quesito uns – nesse caso, homens – têm mais direitos que outros – mulheres – e através de instituições religiosas, culturais, familiares, etc., têm-se perpetuado estas desigualdades e vidas têm sido prejudicadas significativamente.
Desde muito cedo passamos por um processo de socialização que nos impõe limites em praticamente todos campos da vida, mas que principalmente procura asfixiar o nosso direito à decisão e à nossa autonomia! Tudo isso em nome de salvaguardar os papéis de género que nos são impostos e os “deveres de mulher”, como o de gerar vida, passando por cima da liberdade de escolha e da nossa individualidade. Inúmeras mulheres passam por gravidezes de risco porque simplesmente lhes é retirado o direito de dizer não e de tomar as rédeas das próprias vidas. E a maternidade é só uma das faces dessa moeda. Existem outras faces como, por exemplo, a violência doméstica que encerra a mulher num ciclo tão difícil e complicado que sufoca aos poucos a auto-estima, a personalidade e faz crer que “enquanto mulher” tem de se suportar tudo.
Não poder decidir sobre o próprio corpo implica não poder dizer NÃO a situações que põem em risco a saúde e, em muitos casos, a vida das mulheres. O respeito à vida do qual tanto se fala quando o assunto, por exemplo, é o aborto não serve também para as mães? O nosso respeito à vida precisa prever e criar contextos nos quais as mulheres tenham liberdade e autonomia sobre si mesmas e possam tomar as decisões que forem necessárias para se auto preservarem física e emocionalmente, sem pressões externas.
Precisamos parar de legitimar todas as ideologias que definem e apresentam a mulher como um ser incapaz de decidir e cuja individualidade tem de ser sujeita a outro. Precisamos também parar de legitimar todos os discursos que apregoam os sacrifícios que mulheres têm de fazer pelos outros, não importando o quanto isso as prejudique ou as torne vulneráveis. E ainda, precisamos parar de forçar as mulheres a que se anulem, só por se querer manter padrões sociais: isso pode custar vidas!
Urge a necessidade de refazermos os nossos conceitos, as nossas visões, os nossos discursos pessoais, colectivos e institucionais sobre o que “uma mulher tem que ser e deve fazer”. E, por fim, mesmo que para uns seja doloroso, precisamos aprender que mulher pode ser e decidir o que quiser para si: é um direito! É um direito que não deve abrir margens para discussões. E é, sobretudo, um direito que pode preservar vidas.