Uma boleia a universitários... e a troca de ideias sobre o Aborto

Por Sizaltina Cutaia

Ontem dei boleia a três jovens do sexo masculino, entre os 20 e os 25 anos. Já era noite e eles saiam da Universidade para casa. Um deles reconheceu-me (das notícias sobre a marcha pela descriminalização do aborto) e a seguinte conversa desenrolou-se:

"É a Sizaltina Cutaia? Posso fazer uma pergunta? O que é que vocês defendem afinal? São contra ou a favor do aborto?", perguntou-me um deles. 

"Sim, sou eu. A questão do aborto é muito séria e deve ser abordada com a seriedade que exige, então coloca-la nos termos de contra ou a favor não é a melhor maneira de tratá-la. Deixa-me começar por esclarecer que ser a favor da discriminalização, ou defender o direito ao aborto (terminologia mais adequada) NÃO é a mesma coisa que ser a favor do aborto. Ninguém acredita que o aborto seja coisa fácil ou divertida como se de um passeio ao calçadão da ilha se tratasse. Tão pouco estamos a dizer que o TODA a gravidez deve ser interrompida em qualquer circunstância e em qualquer momento", comecei por explicar-lhe, acrescentando que o que significa ser a favor do direito ao aborto e, considerando o facto de as mulheres abortam independentemente do que diz a lei, é querer garantir que todas as mulheres tenham um atendimento de qualidade, sem o estigma e discriminação da sociedade ou do Estado. 

Ele apressou-se a responder-me, com um "bom, eu sou contra o aborto, mas aceito as excepções e do que eu sei, o Código Penal aprovado pela Assembleia Nacional na generalidade, continha algumas excepções para os casos de violação, risco para a mãe e feto inviável. E mesmo assim vocês foram marchar. Porquê?". 

Voltando a um assunto que tantas vezes me passa pela cabeça, tentei explicar-lhe que há muita desinformação sobre o conteúdo do que foi aprovado. De facto, o texto aprovado na generalidade trazia as excepções citadas. Entretanto, nas discussões em sede das comissões de especialidade da Assembleia Nacional, ficou decidida a retirada dessas excepções. Foi isso que gerou a indignação da maioria das mulheres e que resultou, entre outras coisas, na marcha pela despenalização. "Para mim, e as minhas companheiras do Ondjango Feminista, as excepções citadas não nos satisfazem enquanto defensoras do direito ao aborto livre e seguro", conclui. 

Ele foi rápido a perguntar-me o porquê. 

"Ora, porque as excepções, tal como foram propostas, apesar de ser considerado um pequeno avanço, não resolvem o problema. Sabes a dificuldade que existe para se poder registar uma ocorrência de violação sexual? Sabes como funcionam as instituições que tratam dessas questões? Como disse uma vez a jornalista Luísa Rogério,'até a mulher obter autorização para interromper uma gravidez resultante de violação sexual, é bem capaz da criança já estar na escola'. Não é justo negar à mulher o direito de poder decidir em relação à interrupção de uma gravidez que ela não queira levar adiante", respondi, sentindo, no entanto, que havia da parte deles abertura para ouvir mais. Entusiasmei-me e continuei: 

"A realidade é que as mulheres vão continuar a fazer abortos de forma clandestina e, na maioria dos casos, inseguros. A clandestinidade do aborto cria dois problemas para a sociedade: 

  1. Fazem com que as mulheres se submetam a condições sub-humanas, o que resulta em elevadíssimos problemas de saúde. Os dados publicados pela imprensa e referidos pela Dra. Rosa Bessa (em entrevista ao microfone da Rádio Luanda no dia 8 de Março de 2017), indicam que 10% das mortes maternas, registadas na maternidade Lucrécia Paim, em Luanda, são consequência de complicações resultantes de abortos clandestinos. Que todos os dias chegam no mínimo 12 mulheres com complicações resultantes desses abortos, quando as mulheres não morrem, ficam com vários problemas como a esterilização (operação de retirada do útero) entre outras infecções que criam custos elevados para o sistema de saúde, já debilitado. Todas as estatísticas (embora poucas) combinadas, dão conta de que as mortes provocadas pelos abortos clandestinos, correspondem a 3ª maior causa de mortalidade materna no país. Esse índice tão elevado de mortalidade, faz certamente do aborto uma questão de saúde pública. 
  2. Agravam as desigualdades sociais entre as mulheres: como disse antes, as mulheres abortam pelas mais variadas causas e independente do que diz a lei. Ocorre porém que a criminalização tem mais impacto nas mulheres mais pobres. As mulheres em melhor situação económica, apesar de abortarem clandestinamente, fazem-no em relativa segurança e sem qualquer pena, porque sendo mais instruídas e com posses financeiras podem recorrer aos serviços de saúde da rede privada ou viajar para o exterior do país, para aqueles países em Africa ou no resto do mudo que permitem a interrupção voluntária da gravidez. Assim, as mulheres que morrem na estatística que apresentei anteriormente são as mulheres mais pobres. Umas das funções principais do Estado é a promoção da justiça social. Isso se faz com a adopção de políticas e práticas que permitam a redução das assimetrias sociais e a garantia de igual acesso às oportunidades sociais e económicas para todos e todas. Essa é, de resto, uma das premissas principais do que Amartia Sen no seu livro 'Desenvolvimento como Liberdade', defende como sendo fundamental para que se alcançar o desenvolvimento dos países", alonguei-me. 

A pergunta chegou novamente rápida: "Países de África?"

"Sim, alguns países africanos avançaram nesta questão: Moçambique, Tunísia, Cabo Verde, Africa do Sul e Zâmbia. Neste momento, os dois Congos, Egipto, Gabão, Guiné Bissau, Madagáscar, Mauritânia, São Tomé e Senegal, são os únicos países no continente que proíbem sem nenhuma excepção, a realização de abortos", enumerei.

"E então o que vocês propõem? A liberalização completa do aborto, não acham que isso vai banalizar o sexo?"

Uma pergunta comum, e importante de esclarecer, pensei. "A garantia do direito ao aborto não é a mesma coisa que a promoção irresponsável e indiscriminada do aborto. Aliás, a ideia do aborto como meio contraceptivo só cabe na cabeça de quem se opõe a esse direito e defende a criminalização da prática. Temos consciência, e qualquer profissional de psicologia ou medicina pode confirmar, que o aborto é algo traumático tanto para o corpo como para a cabeça da mulher. Que as mulheres que decidem submeter-se a tal trauma, fazem-no após uma reflexão cuidada e não de ânimo leve. Nenhuma mulher faz aborto para a sua própria conveniência ou 'capricho'.

Na entrevista que citei, a Dra. Bessa dizia que a maioria das mulheres que chegam à maternidade com complicações resultantes de abortos clandestinos e inseguros, são mulheres casadas ou em união de facto e mulheres com pelo menos um filho, que foram abandonadas pelos seus companheiros, e que não têm condições de criar dois filhos sozinhas. Isso indica que o argumento da “liberalização” ou promiscuidade não faz muito sentido. Por outro lado, se pesquisarmos sobre o assunto em outros países, compreenderemos que os países que despenalizaram o aborto melhoraram os seus índices de saúde no que toca a questão dos índices de mortalidade materna. 

Por isso, o que propomos é o seguinte: que se mantenham as todas as excepções do artigo 158º e que se acrescente a elas a excepção que permita o aborto por vontade e/ou consentimento da mulher, desde que este ocorra nas primeiras 12 semanas de gravidez. Segundo a OMS, este é o período considerado seguro para a realização de abortos sem colocar em risco a vida da mulher. Quanto a nós, este também é o meio-termo que pode satisfazer a todas as sensibilidades e fazer a diferença no sentido de alterar o actual quadro já apresentado anteriormente".

Atento ao que estava a dizer , o estudante fez-me uma última pergunta: "E o direito a vida? Como fica a vida da criança? O estado tem de proteger a vida, Sizaltina…" 

"A defesa do direito ao aborto também não é contra a vida. Podemos até fazer um debate sobre quando começa a vida e por ai adiante, mas este é um debate que não nos levará a lado nenhum porque nem sequer há consenso entre os cientistas sobre quando a vida humana começa. Por isso, o que prevalece nesta discussão são opiniões filosóficas ou crenças religiosas, e não factos! Eu podia dizer que feto não é pessoa e sim um projecto de pessoa, mas há argumentos melhores elaborados por digníssimos professores de Direito. 

Sobre a questão da protecção da vida intrauterina, os constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira, na sua Constituição da República Portuguesa, explicam o seguinte: “ (...) Enquanto bem ou valor constitucionalmente protegido, o conceito constitucional de vida humana parece abranger, não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa, a vida intrauterina (independentemente do momento em que se entenda que esta tem início). É seguro, porém, que: a) o regime de protecção da vida humana, enquanto simples bem constitucionalmente garantido, não é o mesmo que o do direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, no que respeita à colisão com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (v.g., vida, saúde, dignidade, liberdade da mulher); b) a protecção da vida intrauterina não tem que ser idêntica em todas as fases do seu desenvolvimento, desde a formação do zigoto até ao nascimento; c) os meios de protecção do direito à vida – designadamente os instrumentos penais – podem mostrar-se inadequados ou excessivos quando se trate da protecção da vida intrauterina. 

Assim apesar de não estar expressamente consagrada, consideramos que a vida intrauterina constitui um bem constitucionalmente tutelado, de onde deriva a obrigação do Estado de a defender. Contudo, o reconhecimento da dignidade constitucional da vida intrauterina, que é independente de concepções filosóficas ou religiosas sobre o início da vida humana - não impede, como é óbvio, a admissão de que a sua tutela seja menos forte do que a da vida das pessoas humanas (...), devendo portanto sujeitar-se à necessária ponderação com o direito à vida e dignidade da mulher grávida"", citei. 

"Faz algum sentido, Sizaltina, mas"... chegamos ao local em que tinha que deixá-los e tivemos que interromper a conversa. Foi refrescante perceber naqueles jovens a disposição para conversar, e poder falar sobre este tema com pessoas que, apesar de não concordarem, não sentem a necessidade de agredir. Diálogo, aliás, é que faz falta nesta nossa sociedade tão polarizada como resultado da guerra de quase trinta anos, e com uma educação tão pobre no que toca ao desenvolvimento do sentido critico e da tolerância. Trocamos números de telefone, na esperança de continuarmos a conversa num outro dia. 

 

Sobre a autora:

Sizaltina Cutaia é activista feminista.

 

Anterior
Anterior

Reivindicando o espaço para nos chamarmos Feministas Africanas

Próximo
Próximo

As Águas da Marcha