As Dez Faces da Sexualidade, por Sylvia Tamale
Introdução
Como a maioria de nós sabe, a Sexualidade é um dos problemas mais complexos e politizados no continente Africano. Se a Sexualidade olhasse ao espelho, ela veria numerosos rostos. No texto abaixo, eu faço um mapeamento das dez diferentes "faces" da sexualidade, conforme se têm se manifestado no Uganda, analisando suas intersecções com os direitos humanos e as regras e normas que de jure e de facto moldam e adornam as suas características.
1. A Face Erótica
Vestindo o manto de silêncio e mistério, a face da Sexualidade sobre a qual a maioria de nós gosta de se debruçar é a que apresenta o desejo e o prazer erótico. A maioria dos ugandenses desejaria - se não abertamente, pelo menos secretamente em suas mais profundas fantasias - que eles fossem livres para expressar sua sexualidade e obter o máximo de prazer com isso, desde que essas expressões e atividades envolvam o consentimento de participantes adultos. Infelizmente, existe uma face legal que desdenha a face erótica, com implicações significativas para o nosso direito ao desejo, o nosso direito ao prazer, e claro, o nosso direito de amar…
2. A Face Legal
A face legal da sexualidade é poderosa e é revestida de regras duras, restrições, regulamentos e proibições sobre como, onde e com quem nós praticamos a sexualidade. Essa face seria atraente se as regras fossem limitadas a punir aqueles que infligem danos através da exploração, assalto e violência sexual. Mas ela vai muito além disso, chegando muitas vezes a ser paternalista, controladora ou até mesmo sexista. No processo, essas restrições violam os nossos direitos à privacidade, à não discriminação, à autonomia, à integridade e à dignidade. Exemplos de tais leis abundam, incluindo as leis sobre a prostituição, o adultério criminal, a homossexualidade, a violação sexual conjugal, a pornografia e o aborto. Mas como uma espada de dois gumes, essa face tem dupla utilidade e muitas vezes o seu segundo lado é utilizado por grupos marginalizados no Uganda para desafiar o seu lado restritivo. Através do litígios estratégicos, alguns dos restolhos e sardas na face legal restritiva foram tornados inconstitucionais. Por exemplo, em um caso apresentado por uma ONG chamada Law and Advocacy for Women in Uganda (LAW-U), a penalização do adultério, que teve como alvos as mulheres e não os maridos, foi declarada inconstitucional em 2010.
3. A Face Reprodutiva
Isto leva-me à próxima face da sexualidade, cuja testa carrega o guião dos papéis das mulheres e dos homens na continuidade da vida. Isso é a face da reprodução, que aborda tanto a saúde como os direitos humanos. A testa desta face é vincada por leis restritivas ao aborto, e a boca se contorce com as práticas que proíbem a contracepção. O bem-estar desta face é ainda mais afetado pelo subdesenvolvimento e a falta de compromisso político com a sua agenda. No Uganda, os olhos da face reprodutiva estão geralmente fechados ou na melhor da hipóteses entre-abertos. Enquanto o aborto terapêutico é legalmente permitido, o acesso a esse procedimento continua a ser um grande desafio, tornando-se ainda mais confuso por causa das políticas governamentais que são mais acomodativas o que a lei.
4. A Face Violenta
A face violenta da sexualidade está irritada e tem um rosnado permanente. Ela está manchada com camadas espessas de danos e muitas vezes se esconde por conta de uma vergonha e uma estigmatização total. A face violenta é tipicamente feminina, com um olhar profundo de tristeza que emana a falta de controle. Ela não consegue escapar à violência nos espaços públicos ou privados; nos escritórios, escolas, comunidades e lares; de conhecidos, de membros da família, de indivíduos de confiança e de estranhos. É um rosto que vemos tanto em tempos de paz como em situações de conflito. Esta face é a personificação mais visível da dominação de um género sobre os outros, e é uma face muito consciente das violações dos direitos à autonomia sexual e à integridade física. Atualmente, as leis no Uganda que potencialmente poderiam salvar a vida desta face são ineficazes, estão codificados por meio de uma cultura patriarcal falocêntrica. Infelizmente, uma lei que foi concebida para melhorar esta situação tem vindo a acumular poeira nos corredores do poder desde o ano 2000.
5. A Face Cultural
A persona cultural da sexualidade também tem uma dupla face, exibindo aspectos positivos e negativos. O lado positivo mostra os valores tradicionais africanos que aumentam o prazer sexual, enquanto o lado negativo exibe práticas voltadas para o controle da sexualidade feminina. Nesse sentido esta face tanto pode melhorar como violar os direitos humanos. No Uganda, a instituição tradicional de Ssenga entre os Baganda, por exemplo, desempenha um papel significativo na promoção do direito ao prazer sexual, por um lado. Por outro lado, apesar da proibição da prática cultural da mutilação genital feminina, essa ainda é praticada por algumas comunidades no país.
6. A Face Heteronormativa
A face heteronormativa da sexualidade tem grandes e belos olhos que são enganosos, porque eles escondem uma deficiência grave, ou seja, o fato de que sua visão central é exclusivamente binária. Esta deficiência visual significa que tende-se a classificar as pessoas em termos absolutos, quer como homem heterossexual ou mulher heterossexual. Quando o optometrista prescreve lentes de direitos humanos que possibilitem à face ver claramente a diversidade à sua volta, as faces legais, culturais e religiosas conspiraram para esconder a receita. No Uganda, estas faces conspiratórias não só possuem plataformas poderosas para promover o ideal heteronormativo, alimentando o ódio e a violência, a cada passo com uma retórica homofóbica e transfóbica; elas também tentam destruir a rica diversidade das faces do Uganda, em especial as homossexuais e as bissexuais. A perversa Lei Anti-Homossexualidade, que foi invalidada pelo Tribunal Constitucional em 2014, foi a última tentativa de reforçar o apoio jurídico a essa face.
7. A Face do HIV
De longe, só pode ver o lado epidemiológico da face do HIV. Entretanto, um exame mais atento irá realçar as marcas inconfundíveis do género e do poder, bem como os sulcos da opressão de classe social. O acesso ao creme genérico barato que o dermatologista recomendou está se tornando cada vez mais difícil, perante as proteções internacionais de propriedade intelectual. Como se isso não fosse mau o suficiente, no ano passado, o governo do Uganda aprovou a Lei da Prevenção e Controlo do HIV e SIDA (HIV and AIDS Prevention and Control Act "HAPCA"), que criminaliza a vida e as actividades sexuais desta face. A ironia é que tal lei que pretende basear-se em princípios de direitos humanos, de facto, espezinha os direitos humanos. Os lados sócio-económicos e culturais desta face expõem claramente as dinâmicas complexas entre género, direitos humanos e HIV. Portanto, a HAPCA não só viola a Constituição e as políticas nacionais sobre o HIV/SIDA, mas também viola os vários direitos consagrados nos tratados internacionais de direitos humanos com os quais o país se comprometeu.
8. A Face Política
Os contornos da face política da sexualidade servem a um propósito sócio-político específico de definição dos critérios de cidadania sexual. Ela é tingida com a retórica hipócrita que usa a máscara de "preservar os valores familiares tradicionais", "proteger as nossas crianças" e "manter a moralidade." Ela tem a tendência para pressionar botões de pânico, para remover o contexto histórico, alienar as faces de outras sexualidades e apelar aos sentimentos populistas. Por exemplo, a Lei Anti-Pornografia, que foi aprovada pelo governo do Uganda em 2014 encorajou muitos grupos de vigilantes e funcionários abusivos do governo a adoptar práticas que maltratam as mulheres, incluindo despi-las publicamente. Em suma, essa face instrumentaliza a sexualidade para fins políticos e, no processo, marginaliza e inflige danos incalculáveis aos diversos grupos minoritários no Uganda. A face política, que é uma aliada próxima das faces religiosas e culturais, geralmente eleva sua cabeça feia coberta em rixas partidárias, ódio sectário, preconceito contra os jovens, neoliberalismo, patriarcado e militarismo.
9. A Face Religiosa
Muito semelhante à face política é a religiosa. A mensagem nesta face nos diz que o sexo que é não-genital, não-procriativo, fora do casamento, e aquele realizado entre indivíduos do mesmo sexo, é pecaminoso. A personalidade desta face é fortemente influenciada pelo princípio moral da lei natural que a torna particularmente atraente para a face legal. Mas a moralização sexual é implantada com base em padrões diferenciados para homens e para mulheres. Exemplos incluem as leis que criminalizam o adultério e a prostituição. No Uganda, por exemplo, o crime de prostituição criminaliza vendedoras de sexo (na sua maioria mulheres) sem tocar nos compradores de sexo (a maioria dos quais são homens). O positivismo jurídico e a jurisprudência feminista têm criticado fortemente essa face por conta da adopção de leis sexuais moralistas ao invés de leis baseadas em direitos. No Uganda, esse rosto é personificado pelo Reverendo Padre Simon Lokodo, o Ministro da Ética e Integridade, que policia a sexualidade das mulheres com braço de ferro. Esta face também está numa luta política constante com a próxima …
10. A Face Subversiva
A face subversiva da sexualidade tem uma piscadela permanente! Ela carrega uma corrente de sexualidade rebelde e sem restrições. Muitas vezes caracterizada por grandes habilidades criativas, a sexualidade subversiva conscientemente quebra tabus sexuais e atravessa as vívidas linhas vermelhas. Ela ignora as normas e atira o preconceitos ao vento; não tem medo de usar palavras menos convencionais e, para de deliciar com o constrangimento que isto causa, sabendo que o que está fazendo está expondo as hipocrisias inatas dos seres humanos: "F****-SE", ela diz ao mundo. E sabe que, secretamente, o mundo realmente concorda.
Esta face organiza e mobiliza de formas radicais, constrói "contra-verdades" sobre as suas realidades, numa tentativa de derrubar as mentiras apresentadas sobre a sua persona. Mas a face subversiva faz tudo isso a um preço enorme de contra-reação rápida e feroz das faces legais, políticas, religiosas, heteronormativas e violentas. Estas faces conspiram contra ela para esmagar todos os seus direitos sexuais. Na verdade, elas não estão satisfeitas simplesmente com ideias, mas tentam apagar completamente a imagem da face subversiva. E as ferramentas utilizadas vão desde o ácido à faca afiada do cirurgião genital tradicional. Fundada em Outubro de 2009, a associação da sociedade civil sobre os direitos humanos e lei constitucional (Civil Society Coalition on Human Rights and Constitutional Law) é o lado mais visível dessa cara no Uganda, apesar de serem os movimentos das minorias sexuais (LGBTI) e das trabalhadoras de sexo os que realmente estão na vanguarda desta luta.
Conclusão
O diagnóstico é simples: a Sexualidade sofre de um caso crónico da esquizofrenia! O prognóstico não é favorável. Na maioria das vezes a sua condição inflige enormes custos de direitos humanos. Isto provoca profundas perturbações não só na sua vida, mas também na vida dos ugandenses que lidam cara-à-cara com ela. A prescrição para estabilizar a sexualidade é colocá-la num estado de coma induzido antes de realizar uma cirurgia de grande porte que irá deixá-la com uma face completamente fresca e limpa. O novo rosto será construído a partir de diversas linhas puras dos direitos humanos e solidariedade social, que tecem uma teia complexa de justiça, tolerância, igualdade, integridade, dignidade, liberdade e autonomia, segurança, liberdade de escolha, o acesso aos serviços de saúde e, mais importante, o prazer. Este rosto vai refletir a verdadeira natureza social complexa da sexualidade. Mas o desafio é grande! A nova face da sexualidade não deve ser vista como o final da luta; em vez disso, apenas como uma batalha que terá de ser acompanhada por muitos parentes, vizinhos e conhecidos da sexualidade.
Tradução de Âurea Mouzinho. O texto original foi escrito em inglês e está disponível aqui
Sobre a autora:
Nasceu no Uganda e é professora associada na Makerere University in Uganda. A sua pesquisa inclui as seguintes áreas de interessa: Mulheres do Terceiro Mundo e a Lei, Teoria Legal Feminista, Género e Política, Género e Sexualidade. É autora de várias publicações e recebeu inúmeros prémios. Na nossa secção de artigos podes encontrar uma tradução para o português do artigo "As Dez Faces da Sexualidade".