Quando o Governo combate o pobre e não a pobreza

Por Cecília Kitombe


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Quando Angola alcançou a paz em 2002, todos gritámos e celebrámos a vitória, porque tínhamos a Guerra Civil como o inimigo do desenvolvimento. Crescemos ouvindo que o país não se desenvolvia por falta de paz. Foi então que assistimos ao calar das armas e, com isso, renovou-se a esperança de dias melhores para os homens e as mulheres de Angola. Volvidos quase 17 anos de paz, ainda nos debatemos com outras “guerras”, tais como a luta pela sobrevivência e o combate à pobreza. À medida em que os anos foram passando, o Estado foi-se tornando mais ausente na sua missão de garantir o bem estar social das famílias, inclusive nos períodos áureos da nossa economia (2006-2009). 

Os recursos têm beneficiado apenas a alguns, deixando cerca de 51% da população à margem dos ganhos produzidos no país, conforme o relatório do Índice de Pobreza Multidimensional (IPM) do Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento (PNUD), referente a 2018.  

Diante do contexto acima, é natural que as famílias busquem alternativas de sobrevivência. Um dos sectores que mais cresceu ao longo desses últimos anos foi, sem sombras de dúvidas, o sector informal. O relatório da Organização Internacional do Trabalho de 2018 fez saber que 94% da população angolana está ligada ao sector informal. Vários agentes actuam no referido sector mas neste texto o foco será dado à mulher zungueira e à sua relação com as “forças” policiais. 

Se, de um lado, há o crescimento do sector informal, através da zunga para  a venda de produtos diversos, de outro lado há o aumento da repressão e do policiamento do Estado. Refiro-me ao policiamento do Estado para designar o modus operandi do sistema quando este se revela incapaz de lidar com os problemas sociais, servindo-se da polícia como escudo, o braço armado, o meio pelo qual se instala o medo e o cumprimento da lei, seja ela justa ou não. Como exemplo, temos em curso no país a “Operação Resgate”. 

A “Operação Resgate”, conforme os objectivos da mesma, pretende “repor a autoridade do Estado” e “visa recuperar os melhores valores da angolanidade, de educação, ordem, civismo, respeito pelo bem público e pelo próximo”,  afirmou o Presidente da República, João Lourenço, aquando da visita ao Campus Universitário da Universidade Agostinho Neto, numa das visitas de constatação do funcionamento das estruturas, em novembro de 2018.  As afirmações acima são confusas, porque não se percebe o que o Estado pretende repor efectivamente. Antes do governo querer repor a sua autoridade por via da força (a polícia é força e não consenso), deve repensar a sua estrutura e as respostas que tem dado às demandas sociais. Logo, esta afirmação nos leva a reflectir sobre o seguinte: que valores são efectivamente reconhecidos pelos angolanos? Como iremos resgatar valores simbólicos? Será por via da Polícia Nacional que se resgatará os princípios e valores da “angolanidade”? Se partirmos do princípio de que os valores são, por via da regra, processos que fazem parte dos mecanismos de socialização, educação e construção da identidade, não me parece que alcançaremos os resultados esperados, tendo a Polícia Nacional como o segmento institucional para orientar o processo.  

Penso que esta deliberação não foi assertiva, primeiro, pelo caracter totalitário que a nossa polícia apresenta, ou seja, a polícia é criada para ser armada e manter a ordem por via da força, autoritarismo. Não é em vão que o início de carreira de um polícia é todo preparado à margem da sociedade, dos valores de respeito à vida e dos direitos humanos. Ficam em recrutamento cerca de seis meses ou mais. Segundo, pela falta de capacidade da mesma para equilibrar a necessidade de preservação da ordem e a da protecção dos cidadãos e cidadãs detentoras de direitos, quer dizer, a ordem social deve ser fundada na liberdade e justiça social, tendo como princípio a dignidade da pessoa humana. 

Resultado dessa falta de equilíbrio entre a manutenção da ordem e o respeito às liberdades fundamentais, é que o país assiste a algumas situações não muito abonatórias na relação entre os cidadãos e a polícia. Temos o caso recente da zungueira Juliana Cafrique, que foi morta gratuitamente pelo efectivo da polícia nacional que procurava “resgatar a autoridade do Estado”. Será que resgatar os valores do Estado pressupõe matar as mulheres que diariamente se sacrificam para alimentar as famílias? Será que o resgate da autoridade deve ser contraditório aos valores defendidos na Constituição da República? Eis que no artigo 2º da nossa Constituição se afirma que “a República de Angola promove e defende os direitos e liberdades fundamentais do homem [mulher], quer como indivíduo quer como membros de grupos sociais organizados”.

Penso que este e outros casos - como a da senhora que foi morta por atropelamento há dois anos atrás quando tentava fugir de um fiscal,  a mãe e a filha que foram mortas à queima roupa por um agente da polícia em Viana - são situações que mostram a forma violenta e desumana como as famílias e as mulheres em particular têm sido maltratadas pelo sistema governamental que repõe a “autoridade do Estado” ceifando vidas com incidência nas mulheres. 

Repensar a actuação do governo/polícia é fundamental para garantirmos a protecção das mulheres zungueiras, mas esta acção deve estar enquadrada de forma holística através da criação de políticas públicas transversais e multissectoriais, que incorporem os serviços sociais, como escolas, hospitais e outros, que influenciem no reconhecimento social da actuação do governo, pela protecção dos direitos sociais e económicos dos cidadãos e cidadãs. 

Dessa forma, fica expressa a necessidade de reformas estruturais, que tem que ver com a reorganização das diferentes estruturas do governo (educação, saúde, justiça e etc.), responsáveis pela garantia da segurança pública, criando mecanismos de diálogo e participação cívica dos cidadãos e cidadãs na resolução dos problemas sociais. É importante que as políticas públicas tenham reflexo directo na vida dos cidadãos e cidadãs. 

Portanto, o desafio é recriarmos e inovarmos nas relações entre a polícia e os cidadãos, garantir a presença de uma polícia humanizada e preparada para lidar com a complexidade das tramas sociais decorrentes de um sistema de exclusão social. Em alguns países já há experiências relacionadas com a polícia comunitária, exactamente para contrapor a lógica acima referenciada. Talvez para o nosso contexto ainda não seja possível termos este tipo de modelos, mas é necessário que a nossa governação compreenda que o sector informal não se combate com polícias, mas sim com políticas públicas que reconheçam a contribuição do sector, buscando alternativas mais conciliadoras e de integração,  aproveitando as potencialidades das mulheres e dos homens. 



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