Reconfigurações Familiares – As Mulheres Enquanto Provedoras

Fotografia de NeideTsenane

Fotografia de NeideTsenane

POR CECÍLIA QUITOMBE

O presente texto tem como objectivo fazer uma reflexão em torno dos preceitos ligados às reconfigurações familiares que estão a emergir na sociedade angolana. Se antes a abordagem sobre a família consistia no reconhecimento de que existe um “chefe[1] de família” homem, hoje, essa configuração tende a alterar-se pelo facto de as mulheres assumirem, igualmente, o papel de líderes e provedoras da família”, para além do seu o papel de cuidadoras que ostentam até hoje na estrutura familiar.

Com efeito, a ascensão da mulher no mercado de trabalho e a sua ocupação do espaço público não produziu o efeito desejado, que seria a sua emancipação das funções de “cuidadora do lar”, para, de forma equitativa, proceder-se à distribuição das tarefas domésticas entre os restantes membros da família. Infelizmente, o sistema patriarcal ainda submete a mulher ao exercício de dupla jornada de trabalho, ou seja, a mulher profissional e a mulher “cuidadora do lar” (cuidar dos filhos, cuidar do marido, cozinhar, lavar, etc.). De facto, ainda se prega a falsa imagem da “super mulher”, sobre o pretexto de que não podemos esquecer a nossa “essência”, expressão que mata qualquer processo de empoderamento feminino e que contrapõe a lógica dos direitos das mulheres. Enquanto feminista, aprendi que não haverá transformação social se não se verificarem as devidas alterações no que diz respeito às estruturas sociais e culturais de um povo, sobretudo num contexto onde a violação dos direitos das mulheres foi naturalizada.

Entendemos a cultura enquanto processo dinâmico, de mudança de hábitos, comportamentos e valores ajustados aos direitos universais. Torna-se necessário desmistificar as prescrições que se encontram em torno do conceito de cultura à medida em que contexto sócio-cultural nos mostra os desafios infinitos que as mulheres têm percorrido para conciliar a vida familiar e profissional. Trazemos, por isso, algumas questões orientadoras, que se traduzem nas seguintes: (i) Tendo em consideração o nosso contexto histórico-cultural, ainda é possível falarmos em homens provedores e mulheres cuidadoras, ou podemos já verificar mudanças expressas nos arranjos familiares? (ii) Dado que as mulheres tendem a assumir diferentes papéis sociais que esbarram a normatividade, até que ponto o contexto actual nos auxilia a repensar esses papéis de género?

Antes de continuarmos a aflorar sobre as reconfigurações familiares que temos observado, cabe-nos aludir o contexto real de desigualdades de género em Angola. Segundo o relatório sobre o Inquérito de Indicadores Múltiplos de Saúde – IIMS 2015-2016, 35% dos agregados familiares são chefiados por mulheres. Sim, há uma predominância masculina, mas quando é questionada a sua eficiência na estabilização familiar, os cenários abaixo mostram-nos uma outra realidade, não em termos quantitativos, mas sim qualitativos e que deverão ser válidos para a reflexão de todos e todas (ler últimos parágrafos). 

Outro dado importante do IIMS 2015-2016 é o facto de a taxa de analfabetismo estar aquém das expectativas sociais, sendo que temos, ainda, cerca de 47% de mulheres que não sabem ler nem escrever, o que agrava ainda mais a condição cidadã dessas mulheres.

Diante disto, não podemos deixar de mencionar que factores como a fuga à paternidade, a violência doméstica, a promiscuidade masculina, entre outros,  contribuem, consequentemente, para a criação de famílias monoparentais (em grande parte dos casos as provedoras são mulheres). Estes factores podem levar as mulheres a desencadearem processos para prover a família, através da aquisição de empregos precários, vendas ambulantes (zunga), trabalho escravo, trabalho de sexo, etc., tornando-as desafiadoras de um sistema estatal que as reprime, ao mesmo tempo que se tornam verdadeiras provedoras familiares.

No âmbito do contexto apresentado, decorrem algumas inquietações provenientes da observação e de diálogos transversais que fomos mantendo com algumas mulheres vulnerabilizadas pela pobreza e desigualdades sociais. Nesta medida, pretendemos contribuir com alguns factos concretos resultantes da relação com estas mulheres, de forma a contribuirmos com as suas experiências pessoais e colectivas, sendo que, tal como referimos anteriormente, um dos primeiros resultados que constatamos, e que facilmente se percebe é o facto de algumas mulheres se revelarem não só cuidadoras, mas também provedoras (aquela pessoa que assume a chefia na família e mantém-na do ponto de vista financeiro e educacional).

Face ao acima exposto, estamos em condições de partilhar alguns cenários desenhados de acordo com os diálogos mantidos e que nos ajudaram a clarificar o papel de provedora assumido por mulheres:

Primeiro Cenário: Mulheres que vendem nos mercados informais porque o salário do marido não chega para manter a família, sendo que as mesmas têm de vender produtos variados para apoiar na compra de comida, roupa, material escolar, consultas médicas, compra de medicamentos, etc.;

Segundo cenário: Mulheres viúvas, mulheres que não têm parceiro por terem sido abandonadas e que têm, em média, três filhos para sustentar (compra de material escolar, roupa, alimentação, etc.). Muitas dessas mulheres vivem de apoio de outros familiares, acabando estes por ser o suporte financeiro e emocional para as mesmas suportarem a pressão social que se faz sentir no que diz respeito ao sustento dos filhos;

Terceiro Cenário: Mulheres que, mesmo tendo marido, não recebem qualquer apoio financeiro por parte do mesmo, alegando que estes têm mais de uma esposa e que, normalmente, quando têm dinheiro quase não aparecem em casa.

Os cenários apresentados estão submersos noutros, os quais não faremos referência no presente artigo sob pena de o tornar exaustivo. Contudo, os que foram apresentados dão-nos uma visão particular de como as mulheres tendem cada vez mais a assumir a condição de provedoras e cuidadoras do lar ao mesmo tempo.

Ao mencionarmos estas situações ficamos com a impressão de que a luta engendrada por mulheres nos conecta a todas e todos, colocando-nos numa dimensão colectiva. Por exemplo, é possível que algumas e alguns de nós tenha vivenciado na família o prazer/angústia de ver a sua “ mulher”/“mãe”, a desempenhar o papel de provedora. Quantos de nós acompanhamos as nossas mulheres/mães na busca do “pão” para seus filhos? Quantos de nós temos nas nossas mães o espírito de superação e determinação? Quantos de nós vimos os nossos pais/maridos abandonarem as casas para se juntar a outra família? Quantos de nós sentimo-nos inertes ao ver uma mulher provedora, capaz de criar as suas próprias oportunidades e a desenvolver o seu negócio? Enfim, reconhecer a capacidade das mulheres de sustentarem as suas famílias é assumir que as mesmas desafiam a forma como a estrutura económica e social está organizada, de forma a que esta venha a agregar todas e todos de igual modo.

Pelo exposto, concluímos que há uma necessidade urgente e imperiosa de o Estado, estudar, analisar e adequar as políticas públicas de promoção da igualdade de género ao contexto político-social e cultural a que as mulheres “letalmente” são submetidas para, de facto, romper-se com a estrutura que desconsidera os “novos” arranjos familiares e o papel de provedora das mulheres. Não basta termos uma política social que abarca as demandas das mulheres relativamente à ocupação do espaço público ou do mercado de trabalho; é preciso que tais demandas sejam criadas para, efectivamente, serem ajustadas às reais necessidades das mulheres, enquanto chefes e provedoras de família que são. Para além disso, cabe também ao Estado prever a materialização de políticas de transferência de renda às famílias mais vulneráveis, fiscalizar a exploração trabalhista das mulheres, criar estruturas sociais que coloquem a emancipação como objectivo inalienável. Só desta forma construiremos uma sociedade justa e igualitária.


[1] “Chefe de Família” – Infelizmente o termo irá aparecer em alguns momentos, dado que o mesmo foi usado em relatórios institucionais, sendo bastante usado na nossa esfera política e social.

Para mim, o conceito de chefe de família é usado para legitimar a hierarquia familiar, onde o homem assume a maior expressão do sistema patriarcal. Historicamente, esta hierarquia tem custado a vida de muitas mulheres em diferentes partes do mundo, pelo que, a um dado momento, referir-nos-emos à liderança, sendo este um termo mais congregador e democrático. 

Talvez um dia travemos uma discussão mais acirrada sobre o termo em questão (chefe de família).

 

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